Há dois meses, por falta de pagamento, funcionários da Nossa Senhora da Glória cruzaram os braços e blumenauenses ficaram sem ônibus durante nove horas. A interrupção do serviço do transporte coletivo chamou a atenção do Ministério Público para a situação financeira da empresa. O promotor da Moralidade Administrativa Gustavo Mereles Ruiz Diaz notificou o prefeito Napoleão Bernardes. Desde que a notificação foi entregue, em 24 de junho, trabalhadores da Glória já paralisaram o serviço outras duas vezes pelo mesmo motivo. Segundo Diaz, nada foi apurado pela prefeitura.

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Fio condutor da notificação, cabe agora ao poder público explicar ao MP a alteração do controle acionário da Glória, processo que, segundo o promotor, se deu de forma irregular em agosto de 2013. Em entrevista exclusiva ao Santa, Diaz expõe os efeitos negativos que a alteração no comando da empresa causaram sobre o transporte coletivo e os indícios de que o Consórcio Siga _ formado ainda pela Verde Vale e Rodovel _ não tem mais condições de cumprir com o contrato assinado em 2007.

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Santa – O MP entende que houve alteração no comando societário da Glória, embora a prefeitura diga que nada mudou. Qual a avaliação do MP sobre isso?

Gustavo Mereles Ruiz Diaz – Tenho claro para mim que houve a alteração da titularidade. Se o município entende que não, terá que me responder isso por escrito, porque foi notificado e até agora não me respondeu. Eu queria saber o que eles pensam. Não entendo de que maneira eles chegaram a esse raciocínio, por que quem tem a Glória são quatro empresas. Mudou a titularidade de três dessas quatro e eles estão dizendo que não houve alteração nenhuma. O que temos que ver não é só a existência de um sócio, é a existência de pessoas que controlam a sociedade. Porque seria muito fácil então você entrar na licitação e vender a empresa.

Santa – Esse processo de venda pode ser feito quando a empresa atende a uma licitação?

Ruiz Diaz – Não sem a anuência do município. A alteração da titularidade da concessão é possível desde que haja uma razão de interesse público que justifique isso. Como se apura isso num caso desses: tem que instaurar um processo administrativo. A empresa tem que pedir para o poder concedente, falar: “olha, eu estou aqui com dificuldade financeira, quero vender parte da empresa para salvar o negócio”. Daí o município vai ter que fazer uma avaliação de qual é o interesse nisso, porque também pode ser vendido para uma empresa quebrada. Por exemplo, eu sou uma empresa saudável e, como sócia, vejo que não tá legal e vendo para uma empresa quebrada. Isso pode gerar, por exemplo, fraude contra credores.

Santa – Por que é preciso ter essa anuência?

Ruiz Diaz – Porque quem entra tem que ter no mínimo a mesma qualificação econômico-financeira que foi exigida do consórcio quando houve a licitação. Se fosse livre, poderia vir uma empresa que tem qualificação para ir lá e ganhar a licitação e imediatamente depois ela transfere para outro que não tem qualificação para tocar o negócio.

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Santa – No caso da Glória foi feita essa anuência?

Ruiz Diaz – Não. Tanto que eles negam que tenha havido a troca de titularidade. Eles estão negando o óbvio. Eles entendem que não teve nenhuma alteração. Já foram notificados, não sei mais o que o prefeito quer que seja feito ou qual é o argumento que ele tem para negar essa situação. O pior é que uma alteração dessa natureza só pode ser feita para atender o interesse público e o que aconteceu desde então é que a empresa só tem piorado a situação financeira. Pra mim está claro que está havendo desvio dos recursos do sistema. Ela está sendo quebrada de propósito e daqui a pouco do mesmo jeito que vieram, vão embora.

Santa – Por que houve, segundo o MP, agravamento da situação financeira da Glória após a mudança acionária?

Ruiz Diaz – Sei que depois que eles (os novos sócios) assumiram, teve 250 protestos em cartório. Desde 2012 não se paga fundo de garantia e INSS. A situação é muito grave.

Santa – O MP alega que a fiscalização por parte do Seterb quanto ao cumprimento do contrato é deficitária. Por quê?

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Ruiz Diaz – Todo mês o município tem que exercer a fiscalização das condições do contrato e isso vem sendo negligenciado desde o início. Só exigiram a frota nova quando o MP exigiu que eles fizessem a notificação. Então a fiscalização não está sendo feita. A situação está onde está por conta de omissão e negligência. O poder público está sendo extremamente negligente nessa fiscalização. Na licitação, quando se estabelece a possibilidade de um consórcio, é para que isso atenda a um interesse público, e o que se mostra agora é que esse consórcio visa atender única e exclusivamente o interesse das três empresas que já estavam prestando o serviço. O poder público tem como diminuir essa dependência da Glória quando impor que ela atue como um consórcio. Hoje as empresas atendem exatamente as mesmas linhas de ônibus que atendiam antes da licitação. Então qual o sentido da licitação? Nenhum. Pra que consórcio então? Não era preferível que cada um tivesse concorrido por si próprio? Então, se as empresas mantiverem essa atuação separada, isso caracteriza um cartel e não um consórcio. O município precisa intervir para que isso pare de ocorrer, para que as empresas parem de atender por caracterização e não como consórcio. Isso me parece mais grave ainda. Eles têm que exigir do consórcio que coloque o ônibus na rua, não importa se é de A, B ou C. E o que eles estão fazendo é falar que tal linha é Glória, a outra é Rodovel. Consórcio é um só, é uma unidade jurídica.

Santa – A obrigação do consórcio de manter o serviço funcionando se aplica também às questões financeiras da Glória?

Ruiz Diaz – As questões que dizem respeito à operação do serviço, sim. As dívidas da Glória, não. A dívida é de cada um, cada um que responda por si. Elas são empresas que participam da formação do consórcio, então a responsabilidade solidária delas se limita ao consórcio. O resto é o poder público que tem que intervir. Vamos supor que em um determinado mês eles fazem a fiscalização e só a Rodovel não pagou os salários, então eles responsabilizam o consórcio. O consórcio deve ser notificado. E o consórcio vai cobrar e tratar internamente as responsabilidades de cada um.

Santa – O MP alega que a alteração no comando da Glória vem sendo prejudicial ao contrato de concessão e que a qualificação econômico-financeira exigida pelo edital e pelo contrato encontra-se alterada. Por quê?

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Ruiz Diaz – A qualificação econômico-financeira é uma série de pré-requisitos e patrimônio que ela tem que ter, como índice de liquidez financeira e tudo mais. Então, o que é exigido no começo precisa se manter até o fim. Quando a empresa mostra que esse índice caiu, o poder público precisa investigar o porquê. E eles não estão investigando. Eles estão se enrolando e se omitindo. Estão negociando uma coisa que não tem negociação. O consórcio já violou as regras e cabe ao município instaurar um procedimento para apurar isso.

Santa – O MP diz que há indícios de que o consórcio não tem mais condições financeiras para manter o serviço. Que indícios são esses?

Ruiz Diaz – As falhas trabalhistas são as mais evidentes. Mas há protestos nos cartórios que mostram que a situação é complicada. A empresa (Glória) tem inclusive dificuldade de comprar porque não tem mais crédito. Ela não consegue mais comprar combustível. Só consegue se adiantar o valor. Então são sérias evidências de que a empresa não tem mais condições de tocar o negócio. Tanto que também não conseguiu mais comprar ônibus e foi alugar no mercado. Daí trouxe aluguéis muito suspeitos, que ninguém sabe exatamente porque ela alugou dessa empresa. Todos esses ônibus estão penhorados pela Justiça. O município tem que exigir que a empresa tenha o ônibus livre de qualquer ônus. Não fazendo isso, corre o risco de a Justiça soltar uma liminar e tirar os ônibus de circulação. E não são um ou dois, são 70, 80 ônibus que do dia para noite podem ser tirados da empresa porque ela tem restrição judicial.

Santa – O MP entende que há razões para uma quebra de contrato?

Ruiz Diaz – Quando se descumpre um contrato, aí claro que tem graduações. Não é por causa de um ônibus isoladamente que vai se cassar a concessão. Têm multas, advertências, têm várias medidas que a própria lei e o contrato preveem. Cada infração tem que gerar uma responsabilização diferente. Não renovar a frota é uma coisa. Alterar sociedade é outra coisa. Não cumprir obrigações trabalhistas é outro processo. Em cada processo desses, na hora de aplicar a penalidade, é consultado o histórico. Conforme a gravidade das infrações, é aplicada a penalidade, que pode ser, inclusive, a rescisão do contrato em casos extremos.

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Santa – Para esse caso, então, ainda não foram esgotadas todas as alternativas?

Ruiz Diaz – Não foi nem instaurado o processo para apurar. Eles ainda estão conversando. Não há mais nada para conversar, tem que instaurar o processo e justificar porque as cláusulas contratuais não foram cumpridas. É justamente nisso que o poder público tem se omitido. Estão só negociando o que não é mais negociável. É preciso apurar. Já foi instaurado um procedimento para que eles se justifiquem perante o MP o porquê isso noção foi feito.

Santa – Essa justificativa já foi feita? Quais as próximas ações do MP em relação ao caso?

Ruiz Diaz – Não. Ainda estou aguardando que eles me digam o que vão fazer. Se me falaram que não vão fazer nada, entenderei que estão se omitindo. Seria uma grave negligência, que pode ser caracterizada como improbidade administrativa por parte do gestor. Estou aguardando a resposta. Há muita conversa, muito diálogo e pouca ação. Chegou ao ponto de o prefeito falar que o município não tem nada a ver com as questões trabalhistas da empresa. Como não? Isso é uma das obrigações previstas no contrato de concessão e eles têm que manter em dia. Não dá para entender esse tipo de declaração. Se o poder público não tem nada a ver com isso, então quem tem? Os usuários que esperam por um ônibus que não vêm? É inadmissível.