De um lado, com bulldozers, franco-atiradores e helicópteros, militares que sustentaram governos ditatoriais por mais de 60 anos. De outro, a Irmandade Muçulmana, que passou 80 anos desviando-se da repressão e, quando chegou pelo voto ao poder no maior país árabe, foi arrancada mediante clamor popular.
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Divisões e confrontos em um país que, em pouco mais de dois anos, saiu de uma ditadura e sequer conseguiu formar um parlamento não surpreendem. O que confunde analistas e a comunidade internacional é entender como os egípcios passaram da empolgação multitudinária de 3 de julho – quando depuseram com ajuda dos militares o primeiro presidente eleito de forma democrática no país, o islâmico Mohamed Mursi – a uma sequência de massacres.
Em dois dias, foram 700 mortes com ataques das forças de segurança contra os manifestantes da Irmandade Muçulmana. Aqueles que se rebelaram contra a opressão da Era Mubarak estão diante da brutalidade e das regras de uma nova geração de generais que governa com legitimidade popular.
– O mais perturbador do que está ocorrendo, ao meu ver, é um retorno da mentalidade pré-revolução, a de sacrificar os direitos humanos para assegurar que os islâmicos fiquem no poder – observa Cristian Donath, professor assistente de teoria política na American University of Cairo.
Os levantes de 2011, assim como os outros movimentos em países árabes, expressavam a insatisfação e a ira de uma nova geração, conectada com o mundo e que não via no antigo regime espaço para conquistas como um emprego decente e liberdade. Estima-se que mais de 800 manifestantes tenham sido mortos em 2011 na reação de Hosni Mubarak, no poder desde 1981, quando ele herdou o cargo após o assassinato do então presidente Anwar El Sadat. Mas a crueldade do que se viu no cerco a duas mesquitas na quinta-feira e a uma praça na sexta-feira supera os mais brutais dias do ditador.
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“Mesmo que você pense que os generais acertaram desta vez, você irá concordar com eles na próxima?”, questionava em 3 de julho o analista de política internacional do jornal americano The Washington Post Max Fisher, antevendo que a empolgação dos egípcios que seguravam cartazes do general chefe do exército, Abdel Al-Sisi, como salvador da pátria era, no mínimo, explosiva.
O Egito, que no mês passado sentia “estar começando outra vez”, como descreveu o editor da rede BBC no Cairo, Jeremy Bowen, passou a ver confrontos diários com os militantes islâmicos que se postaram ao redor das mesquitas pedindo a liberação de Mursi, preso desde então pelos militares.
Leia mais:
Entrevista com Christian Donath, professor da American University of Cairo
Entrevista com Michael Hanna, pesquisador sênior da The Century Foundation
Sem chance de saída negociada
As negociações políticas falharam e a resistência islâmica aprofundou a divisão na sociedade. A repulsa dos que já não se identificavam com Mursi encorajou os militares, acrescenta Donath:
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– Muitos estavam fartos com os protestos. Havia insultos e confrontos. Os generais passaram a acreditar estar autorizados pelo público para terminar com as manifestações.
Há interpretações também de que os generais queriam provocar a Irmandade a reagir de forma violenta, em esforço para associar a organização ao terrorismo. No dia do massacre, uma série de igrejas da minoria copta, cujos líderes apoiam os militares, foram queimadas. A culpa foi atribuída aos islâmicos, mas é impossível saber quem está por trás do ataques, pondera o professor.
A reconciliação política é possível?, Donath e outros dois estudiosos do Egito, o americano Michael Hanna, da The Century Foundation (veja ao lado), e a brasileira Silvia Ferabolli, doutora pela University of London e analista política sobre o Oriente Médio não vislumbram chances de negociação em um curto ou médio prazo.
– Os militares vão manter o poder até que decidam não mais querer o poder, o que não deve ocorrer no curto nem médio prazo. O que está acontecendo no Egito não é apenas uma quebra de instituições democráticas. É um banho de sangue colocado em prática por um grupo que está apoiando o retorno da elite mubarakiana ao poder – diz Silvia.
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Se os militares mostraram para que voltaram e qual o seu limite de tolerância à resistência da população, como observa Silvia, no outro extremo, a incógnita é o futuro da debilitada Irmandade Muçulmana, matriz de grupos radicais palestinos. A organização há havia cristalizado o fim da luta armada, tornando-se um movimento político. Quanto mais desarticulada, porém, maior o risco de parte de seus membros retrocederem no tempo e recorrerem ao extremismo.
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