Depois de morar no Egito, a professora Silvia Ferabolli, doutora da School of Oriental and African Studies da University of London e professora do curso de Relações Internacionais da UniRitter, afirma acreditar que a parcela da população que uma vez legitimou o golpe perpetrado pelos militares egípcio agora deseja um retorno à normalidade, mais do que qualquer coisa. Em entrevista por telefone a ZH, ela diz acreditar que o interesse dos militares não é retomar a ordem, mas sim instaurar a ordem que a eles convêm – e que as forças armadas não devem entregar o poder tão cedo.
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Zero Hora – Depois do golpe, o que espera o Egito?
Silvia Ferabolli – No futuro próximo, o que vai acontecer é assim: os egípcios estão muito bem avisados agora. Tanto a elite política quanto a população. A elite política está bem avisada de que qualquer coisa que saia daquilo que está programado e aceito pelos militares, qualquer governo que faça qualquer coisa que desagrade os militares será derrubado. Ponto. E a população está muito bem avisada. Os militares têm um limite de tolerância à resistência da população. Se a população resistir, como aconteceu com a Irmandade Muçulmana, os militares não terão nenhum problema em abrir fogo e fazer uma carnificina. Eles podem matar centenas, até milhares de pessoas, estão dispostos a fazer isso para manter a ordem que eles instauraram. Não a ordem, mas a ordem que eles querem.
ZH – É por isso que eles reagem dessa maneira contra a Irmandade?
Silvia – Se os militares derrubaram o primeiro governo democraticamente eleito da história do Egito, esses militares agora não vão aceitar manifestações por parte da Irmandade Muçulmana ou de qualquer outro grupo que queira se rebelar. Os militares vão manter o poder até que decidam não mais querer o poder, o que eu acho que não vai acontecer nem no curto, nem no médio prazo. Então, até lá, se precisar abrir fogo contra dezenas, centenas, milhares de pessoas, eles vão fazer. E o que está acontecendo no Egito não é apenas uma quebra de instituições democráticas. O que está acontecendo no Egito é um banho de sangue colocado em prática por esse governo militar, por esse grupo de militares que está apoiando o retorno da elite mubarakiana ao poder.
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ZH – Esses comandantes militares têm legitimidade ante a parcela que apoiava a renúncia de Mursi?
Silvia – Se, anteriormente, eles tiveram alguma legitimidade ou apoio por parte da população, certamente agora eles vão perder. Lógico que a gente vê na televisão imagens de egípcios beijando as mãos dos militares, agradecendo, mas os egípcios estão cansados. É uma economia que vive quase que exclusivamente de turismo. Imagine o que é um país estar em processo revolucionário há mais de um ano, significando que, simplesmente, a indústria turística egípcia está paralisada. Não consigo entender como as pessoas estão sobrevivendo sem os turistas. Então, na verdade, aqueles que agora beijam as mãos dos militares estão dizendo “se precisar matar todo mundo para que recebamos de volta nossos turistas, para que possamos dar o que comer a nossos filhos, a gente fica satisfeito”. É importante dar uma relativizada no apoio aos militares, porque parte dessa população apoia qualquer movimento que possa fazer o Egito voltar a qualquer tipo de normalidade. Porque se os egípcios tiverem que escolher entre o retorno de qualquer normalidade, a volta dos turistas, eles poderem ter o que dar de comer aos filhos e a democracia, eles vão escolher a primeira opção.
ZH – A comunidade internacional pode intervir?
Silvia – Acho que, em termos de discurso, eles podem dizer que vão fazer alguma coisa. Mas os canais de comunicação abertos entre os Estados Unidos e os militares no Egito desde a década de 1970 são muito fortes. Então eles podem combinar entre eles que vai ser publicamente criticado, mas, por baixo dos panos, ou seja, nos bastidores, os Estados Unidos vão continuar apoiando os militares no poder no Egito porque eles têm essas relações mantidas há décadas e não é de interesse de ninguém que essas relações sejam rompidas. Relações essas que a ascensão de Mursi ao poder visava romper.
ZH – A fragilidade provocada por essa crise pode favorecer a infiltração do terrorismo?
Silvia – Alguns autores dizem que o terror é a arma dos oprimidos. Se a única solução que restar para a Irmandade Muçulmana for retomar ações terroristas que eles tinham abandonado há décadas, exatamente porque estavam aceitando o caminho democrático, a Irmandade Muçulmana vai fazer isso. Agora, não foi a primeira escolha deles. A Irmandade Muçulmana está há anos dizendo que quer assumir o poder pela via democrática, estava se comportando democraticamente. Esse massacre que aconteceu agora nada mais vai fazer do que colocar a Irmandade Muçulmana de novo na clandestinidade e fazer com que eles retomem atos de terror que eles haviam abandonado.
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ZH – O que dizer sobre as queixas de uma islamização do Estado por parte da Irmandade?
Silvia – Nunca houve nenhuma tentativa de implementar nenhum tipo de sharia no Egito. A Irmandade Muçulmana nunca fez nada nem perto disso. Se no Brasil a gente coloca o debate sobre casamento gay e aborto no âmbito religioso, no Egito eles colocam alguns debates fundamentais do desenvolvimento do país na linguagem muçulmana. O problema é esse. Quando alguém invoca, no Brasil, que deus fez o homem e a mulher para procriarem e povoar o planeta e isso é usado como argumento legítimo para impedira legalização do casamento gay, é óbvio que, no Egito, usam-se argumentos baseados na sharia, baseado em leis canônicas islâmicas. Mas isso não significa a islamização do Estado egípcio, mas que o vocabulário que eles estão usando é um vocabulário que vem do Islã. São coisas diferentes.
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