O carioca convive com o medo. Aprendeu a lidar com ele como um companheiro de caminhada na orla de Copacabana. Andam juntos, seja na Zona Sul, onde ficam os bairros mais nobres da cidade e favelas, caso da Rocinha e do Vidigal, ou na Zona Oeste, região da Vila Kennedy, tomada pelo Exército desde a intervenção federal iniciada há um mês. Os moradores acostumaram-se com o desconforto, com a sensação de que o pior está por vir a qualquer momento. Mas, acredite, isso não os incomoda. Pelo contrário. Está na rotina adaptar-se.

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Os cariocas estão cientes da presença de milícias (grupos criminosos comandados por policiais) em comunidades às margens de vias de alta circulação. Surpreende apenas ao turista ver o taxista e o motorista de aplicativo apontar e dizer com a maior naturalidade: “ali é comandado por miliciano”.

— A gente se acostuma com as situações. Criamos hábitos para andar na rua, sabemos onde é mais perigoso e como devemos circular. É incrível, mas algumas coisas não espantam mais — resume Cristina Paraguassu, 50 anos, dos quais 16 se passaram vivendo na capital fluminense.

A paralisia ao absurdo do cotidiano, no entanto, ainda consegue ser rompida. As mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes, na quarta-feira, trouxeram o carioca de volta à realidade e fizeram a população se questionar. Inclusive, se perguntar da efetividade da intervenção federal na segurança pública. Os assassinatos motivaram pessoas a pensarem em sair da cidade, a procurar outros lugares para morar. E deixaram o futuro em aberto: o que será do Rio depois de Marielle?

A primeira resposta veio ainda na quinta-feira, com milhares de pessoas nas ruas em um pedido coletivo por justiça nas principais ruas da cidade. Surpreendeu até mesmo quem estava descrente de uma reação. Sexta-feira à tarde, novamente um grupo, desta vez bem menor do que os 100 mil estimados pela organização da passeata do dia anterior, voltou a caminhar pela região central.

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— Não vai mudar nada, infelizmente. O problema está nos políticos, e isso não vai mudar — aponta Armando Petito Junior, 31, de São Gonçalo, cidade da região metropolitana.

O assassinato de uma vereadora, representante de diferentes classes e vinda do Complexo da Maré, uma das maiores favelas do Rio, tem outro significado preocupante. Coloca a cidade em um roteiro parecido com Colômbia e México. Neste dois locais, políticos foram assassinados pelo narcotráfico. No país da América do Sul, por exemplo, o traficante Pablo Escobar ordenou as mortes de um ministro e um candidato à presidência da República, entre outros casos violentos.

— Se confirmada essa hipótese de que a Marielle foi executada por organizações criminosas ou policiais, será inaugurada uma nova etapa no Rio de Janeiro, algo que só ocorreu na Colômbia e no México — preocupa-se a cientista social e uma das coordenadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, Silvia Ramos.

(Foto: Diorgenes Pandini / Diário Catarinense)

O coronel da reserva da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro e antropólogo, Robson Rodrigues, enxerga esse momento como uma ponte de reflexão:

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— Podemos ir para uma coisa interessante ou para uma coisa muito ruim. As pessoas estão apavoradas, mas elas já estavam assim. Agora elas estão mobilizadas, e isso coloca em xeque as ações dos governos. A partir dessa mobilização, se forem ultrapassadas as questões menores como “direita” e “esquerda”, pode-se cobrar das autoridades o que tem que ser cobrado para melhorar a segurança pública.

A força da representatividade de Marielle fez o Rio acordar novamente. E trouxe junto a cobrança de resposta por outras pessoas assassinadas na cidade. Somente nessa semana, a violência também levou pessoas como Claudio Henrique Costa Pinto, morto na frente do filho, Katyara Pereira da Silva e Dandara Damasceno de Souza, ambas grávidas, Leonardo de Paula, policial militar, e Benjamin, dois anos, baleado no Complexo do Alemão na sexta à noite. Diante disso, os cariocas repetem o questionamento de Marielle antes de ser executada: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

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