Aí tinha esse cara, não sei bem o emprego dele, acho que difamar Porto Alegre pelo mundo. Nós três conversando no pátio do albergue aqui em Madri e ele veio falar. Veio porque ouviu o português e achou razoável dar um oi. Tudo bem, às vezes também acho, gentileza cívica indolor. Então ele pergunta de onde, os outros dois dizem Aracaju, eu digo Florianópolis. Réplica rápida: “O problema de Florianópolis é que não tem nada pra fazer”.

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Trinta e sete respostas ziguezagueando na cabeça. Entendo o que você quer dizer. Não, na verdade fazer passou a significar contato 24/7 com meio mundo e isso é irritante. Verdade que às vezes a Nossa Senhora da Leseira é f*. Uma trilha até a praia do Saquinho com a gata no sábado não é fazer nada? Complicado, ainda mais se a gente compara com as opções infinitas aqui de Madri. Não foi Sêneca que disse, mais ou menos, que nós precisamos alternar multidão e solidão para curar o excesso de uma com a outra? No fim, me encostei melhor no sofá e disse: “Tu acha mesmo?”

“Tenho apartamento de três andares em Florianópolis. Já visitei 64 países, estive em tudo por aí. Agora tô vendo se me deixam ser professor três meses por ano no Canadá, três por aqui, um no Brasil. Sei do que eu tô falando”. Caricato assim, só estou transcrevendo. Se fosse inventar um gaúcho odioso, tenho certeza que providenciaria um mais matizado.

Eu queria conseguir não responder essas coisas. Aquele silêncio que deixa o outro vergonhosamente consciente de si, um mata-leão retórico. Mas eu sou detestável e acabei respondendo: “Com a minha biblioteca estou bem, cara. Onde for”. Então ele comentou algo sobre o inteligente se isolar, o sábio compartilhar etc. Foi feio de ver. os aracajuanos nunca aprenderam tanto sobre o Sul do Brasil tão rápido.

Cena dois, albergue também. Entro no quarto de 15 camas em que, aluguel terminado, vim passar meus últimos dias de Madri. Duas brasileiras nas duchas perto das camas (!) não sabem que eu ando por ali. Falam alto pra se escutarem por cima da divisória e apesar dos chuveiros. “Pois é, Isabela, você tá num albergue em Madri. Albergue é essa merrrda”. Não era bem sotaque de interior. Era sotaque de capital com notas de frequentadora de sertanejo universitário. Conversa longa. Amaldiçoaram o albergue até a última fétida bota mochileira.

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Típicas brasileiras entojadas, pensei. Naquela noite, um americano roncou por quase três horas, o som aproximado de um urso surrado com um cano; um canadense polifônico acordou para ir até o aeroporto; um alemão com visual de lenhador na parte de cima do meu beliche, que tinha feito check-in de madrugada e eu ignorava, despencou lá de cima.

Assim como nunca inventaria um gaúcho tão caricato, eu nunca inventaria um alemão com visual de lenhador caindo de um beliche. Ele não caiu só uma vez, caiu outra mais tarde. No meio do breu, pesado como uma bigorna. As duas quedas em cima das minhas malas. Barulho incrível, susto do inferno. Ele tentava ir ao banheiro, que é na frente da cama, mas errava o caminho como um lemingue. “Quase esmagasse meu laptop, seu babaca”. “Estou muito bêbado, cara”. Ele tinha acabado de chegar do Nepal. O americano roncava.

As brasileiras foram no Reina Sofia, ficaram “21 minutos”. “A gente é ignorante mesmo, não gosta de museu”. “Dá nada, às vezes cansa mesmo”. “Qual a boa de hoje?”. Uma advogada, a outra administradora. São Paulo capital. Linda, a administradora.

Pensando agora. Por que alguém que pode comprar um tríplex está na merrrda do albergue?

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