Estou na igreja mas minha fé vacila. Quero dizer, estou quase terminando o mestrado mas não consigo rezar com a convicção de outros capuchinhos acadêmicos.

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Alguns dos meus preconceitos caíram. Nem todo professor é um especialista em velhas obsessões, estudar com método ajuda a diminuir o caos. Em compensação, outros preconceitos estão se solidificando como pós-conceitos. Isso de um mestrado de literatura ser um universo de leitores elitistas e entojados, por exemplo.

Sou um contratualista no sentido Jonathan Franzen da palavra, o de que “o propósito mais profundo de ler e escrever ficção é resistir à solidão existencial; então um romance merece a atenção do leitor apenas à medida em que o autor sustenta a sua confiança”. Ou seja, existe um contrato entre autor e leitor. Oposto a esse é o “modelo de status”, que vê a dificuldade literária como excelência e o leitor que foge dela como um filisteu.

Provando que a caricatura segue válida, na aula de algumas semanas atrás tratamos a supervendagem de Em Nome da Rosa nos anos 1980 como uma bizarrice. O romance de Umberto Eco vendeu milhões de cópias e simplesmente não existem milhões de leitores inteligentes. A conclusão implícita era essa. Aí está nossa contribuição social.

Nessa mesma aula falamos da tendência crescente de autoficção, escritores que se usam mais diretamente como material dos seus livros. Um escritor pode falar de experiências suas mais abrangentes, como Reinaldo Moraes tratando de sexo no incrível Pornopopéia (acento dele); ou um escritor pode criar um protagonista que fica filosofando sobre a própria escrita, uma praga que mata uma antílope tibetano a cada livro publicado.

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– O protagonista escritor é um pecado da literatura – eu disse na aula.

Silêncio, muitas caretas de nunca-pensei-no-assunto.

– Por quê? – perguntou a professora.

Por quê?! Eu tinha mais de 50 porquês! Eram tantos que sob pressão caíram quase todos, saíram quicando como bolas de gude. Grunhi alguma coisa sobre o valor da alteridade, sobre a literatura não dever restringir personagens para não se fechar em si mesma. Foi só.

Mais bem dito, agora, a verdade é que existe um paralelo muito claro entre protagonistas escritores e aquele modelo de status, elitismo e entojo comentado antes. O mundo aqui fora nesse rebuliço e ali muitos escritores sem experiências amplas, protagonizando as próprias páginas para “questionar a própria escrita” e onanismos intelectuais do gênero.

No artigo É Possível Pensar o Mundo Moderno sem o Romance?, Vargas Llosa lembra que a especialização contemporânea “leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em estabelecimentos ou guetos culturais”. Como na moral antiga, diz, estamos nos concentrando na folha e esquecendo que ela é parte do bosque. Aí entraria a literatura, “um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam” independentemente das suas geografias e histórias. Exaltando-se um pouco mais, Llosa defende que o “conhecimento totalizador e imediato do ser humano, hoje, se encontra apenas no romance”.

É uma linda defesa, mas no final eu diria “deveria se encontrar no romance”, porque não é como se os escritores estivessem todos fazendo sua parte e os leitores não. Filmes e seriados andam tematicamente menos covardes. Escritores-falando-da-escrita estão focando mais os denominadores comuns da profissão que os da experiência humana. É deprimente que muitos capuchinhos acadêmicos não percebam.

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