Ansiedade, nervosismo. Camila sempre fica assim quando está prestes a fazer uma viagem. Fez mil planos, traçou centenas de roteiros, visitou dezenas de sites e garimpou mais um punhado de informações entre amigos e amigos de amigos sobre o país novo que iria conhecer. Em resumo, um paraíso na Terra.

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Malas prontas, passaporte em dia, casa fechada, planta na vizinha para ser regada e lá vai ela para o aeroporto. Feliz, mas cansada, dormiu pouco por causa dos afazeres profissionais e domésticos que exigiram da jovem, nem tão jovem assim, atenção especial. “Agora é minha vez, minha hora, meu momento! Viva minha sonhada férias. Paraíso, aqui vou eu!”.

Viagem longa e com muitas escalas. Na primeira delas correu tudo bem, com exceção da falta de um lanchinho básico. Não serviram nem água, muito menos aquela insuportável barrinha de cereal ou um mísero saquinho de amendoim.

Tudo bem, eram horríveis mesmo, mas pra quem não teve tempo de comer antes de embarcar, até que quebravam um galho. O jeito é comprar alguma coisa antes do próximo voo. “Vou de pão de queijo que não quero começar a me entupir de besteiras, além do mais todo o resto deve ser caríssimo. Pão de ouro, só pode. Como um reles acepipe com menos de 25 gramas, custa R$ 5? Imagina na Copa! Oba, hora de embarcar. Vai dar tudo certo, a comida será ótima e terei mais de um acento só pra mim.”

Espera aqui, passa ali, apresenta documentos acolá, entra no ônibus, sobe na aeronave, recebe indicação da poltrona. Simpáticos os aeromoços e moças! Senta no lugar indicado e aguarda todos os demais passageiros entrarem. “Estou sozinha, eba! Vou mentalizar para não entrar mais ninguém. Não acredito, quatro acentos só pra mim. Droga, usei a palavra não acredito. Um homem sentou justo do meu lado”.

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– Hi, hello! Do you speak english? No? Spanish? Portuguese?

– Only deutsch.

“Shit! E agora? Não falo alemão, ele não entende nada e vai grudar em mim. Não vou mais me esticar. Mímica, esse é o jeito. Mas não tem jeito, meu dedo apontando pro outro lado é o mesmo que nada. Bom, mudo eu de lugar, mesmo assim fico só com dois acentos para espichar as pernas. O pulha dorme sentado e ainda deixou um lugar vago. Custava pular mais um? Enfim, poderia ser pior. Pronto, de novo uso palavra indevida, pior. Calada Camila, está tudo ótimo!”.

Que nada, antes do paraíso, uma passada rápida no inferno. “Manda essa criança calar a boca, pelo amor de Jesus menino! Voo internacional não é lugar pra guri pequeno fazer manha”.

– Mamãe, quelo tloca de lugar, quelo senta atí!

– Eu já troquei Junior, agora não podemos mais levantar. Você tem que ficar quietinho, meu amor.

– Mas eu quelo!

– Eu já disse que não pode. A mamãe estava sentada aqui, você pediu pra trocar, e eu troquei, agora não podemos mais.

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– Mas eu quelo, esse lugar é meu (buá, buá, buá)

– Olha, brinca com o seu carrinho.

– Não! (buá, buá)

– Eu não vou mais trocar de lugar.

– Mas eu quelo! Sai daqui, sua feia!

– A moça do avião vai brigar contigo.

– Eu quelo! Eu quelo! (Buá, buá, buá)

– Quietinho meu bem, não dá pra ver nada na janela.

– É meu, sai, mamãe bluxa!

– Por favor, será que não dá pra fazer essa criança parar? Olha com cara de adulta pra ela, fala direto e seco, sem floreios, e diz que ela está infernizando a vida de todos nós. Já faz mais de uma hora que vocês estão nessa ladainha de ‘tloca’, não troca. O ouvido desse povo aqui não é penico, não!

Pronto, evento armado, a mãe quase sai no tapa com a Camila que, apesar dos esforços zen, sofre de sinceridade aguda e fala na cara o que acha que deve. A criança berrou mais ainda, até que a tripulação interveio e salvou a Camila, deslocando a moça, nem tão moça assim, para a primeira classe, a fim de acabar com o barraco.

“Antes do paraíso, o inferno. Melhor, muito melhor assim. Já pensou se fosse o contrário? Calada! Nem pensa mais nisso e dorme esticada que a viagem será longa”.

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