“Quando Lisboa anoitece / como um veleiro sem velas / Alfama toda parece /
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Uma casa sem janelas / Aonde o povo arrefece”.
Segue: “É numa água-furtada /
No espaço roubado à mágoa / Que Alfama fica fechada / Em quatro paredes d’água /
Quatro paredes de pranto / Quatro muros de ansiedade / Que à noite fazem o canto / Que se acende na cidade / Fechada em seu desencanto / Alfama cheira a saudade”.
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Já que cheguei aqui, termino: “Alfama não cheira a fado / Cheira a povo, a solidão / Cheira a silêncio magoado / Sabe a tristeza com pão / Alfama não cheira a fado / Mas não tem outra canção”.
Nada mal a poética: quatro muros de ansiedade, cheiro de silêncio magoado, gosto de tristeza com pão. A música, Alfama, é de Amália Rodrigues e versifica o bairro de fado mais tradicional em Lisboa. Vejam esta versão recente de Maira Andrade e Pedro Moutinho: migre.me/iBFoA. A voz de Maira amansa mais que a de Marisa Monte cantando Barulhinho Bom em quarto escuro há 15 anos.
Daí estou lá, no restaurante Porta da Alfama, escutando um fado direto da fonte. Noite incrível: ambiente pequeno, meia-luz, cantoria inundando todo o ambiente e chegando lá na rua, fados rápidos de humor naïf sendo intercalados com fados melancólicos, desses que fazem entender por que Pessoa se perguntava quanto do mar salgado eram lágrimas de Portugal.
Mas depois os bárbaros. Entre os mais ou menos 20 nativos ali mais pelo fado que pelo bacalhau se somaram um casal de alemães e, na mesa ao lado da minha, um italiano, uma brasileira e dois árabes.
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O de sempre. O turista se afasta milhares de quilômetros de casa em busca de experiências alheias e, quando as encontra, não tem paciência, não tem um pouco de sossego interno para frui-las.
A falação turística naquela noite foi ainda pior primeiro porque o lugar, como eu disse, era pequeno, obviamente pedindo uma escolha entre conversar ou escutar direito os cantores; depois, porque o fado é o oposto da falação turística.
Eu digo, o fado é cantado com as vísceras. Os portugueses não interpretam fados – eles vivenciam fados, eles se desesperam como se, em vez de repetir uma letra, narrassem uma história real e simultânea. Prestem atenção em Pedro Moutinho no segundo 15 do vídeo. Ele sorri de leve para Maira, que é cabo-verdiana e sorri abertamente de volta. Então ele a ignora, fecha os olhos e começa a encarar seus abismos, porque a música vai começar, e a música é uma coisa muito séria.
No extremo frívolo da escala, os turistas se distraíam como o fado com o semi-interesse de quem se distrai com um aplicativo tolo do iPhone. Mesmo com o casal alemão fazendo comentários minuto a minuto, a mesa dos quatro era pior. A brasileira era o alvo dos árabes e do italiano, e eles me castigaram até o fim com sua conversa pseudo-sofisticada de gringo-lobo-mau-querendo-comer-brasileira. Eventualmente choviam “shh!” pedindo silêncio, mas nada: estavam bêbados, aplaudiam na hora errada, constrangiam a dona-garçonete-fadista do restaurante com sua condescendência de turistas pedantes.
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Então uma velhinha loira cantou Alfama. Meu pai acha que, por usar “Momm” em vez de “Pereira” na assinatura jornalística, renego minha herança lusa. Te enganas, meu caro. Os genes portugueses se acenderam todos de uma vez só. Foi bonito. Quase fui ali no Tejo colaborar com um pouco de sal. Deu até para esquecer um pouco dos bárbaros.
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