O sujeito vai comprar carne no açougue da esquina. O local tem costelas, pernis, alcatras e picanhas pendurados em ganchos e é iluminado por lâmpadas fluorescentes. Detalhes da carne. A TV está ligada no Datena, que exibe um cadáver que acabou de ser alvejado por bandidos. Carne humana caída na sarjeta, com a cabeça no meio-fio.
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Academia, saúde, esporte. Um monitor recém instalado mostra notícias que estão nas capas das principais revistas de uma editora. Ele tenta prestar atenção só no exercício físico e desvia constantemente o olhar do monitor. Ao final do treino, percebe que aprendeu muitas coisas: qual celebridade teve filhos, quem se separou, dicas sobre como malhar para ficar com abdominal trincado, como fazer para ter um relacionamento duradouro, dicas sobre alimentação, o suco verde da semana. Lembra que leu também uma frase edificante escrita por Nietzsche.
No caminho de volta tem padaria, boteco, salão de beleza, umas 10 portarias de condomínios, mais um boteco, mais um salão de beleza, este mais chique, outra academia de ginástica e uma floricultura. Todos têm a TV ligada no mesmo programa, que agora mostra um helicóptero acuando gente que o apresentador chama de bandido.
No elevador, o monitor avisa como está o trânsito, depois mostra uma frase edificante, escrita por Platão. Com a seleção das “melhores frases da Veja” aprende sobre a vida sexual do técnico Vanderley Luxemburgo e como o empresário Eike Batista conquista as mulheres.
Ele chega no consultório do dentista. Lá assistem à Globo News, não o Datena. Uma tentativa de assalto, um ônibus desgovernado, um carro esmagado, três pessoas da mesma família mortas. O dentista avisa que ele pode cuspir. Ele cospe sangue. No intervalo comercial, o Roberto Carlos, entre sorrisos e espasmos, canta: “Eu voltei”.
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Ele pega a mulher em casa e vai ao novo japonês que abriu ali na rua. Pode-se ir caminhando. Ao passar por uma portaria de condomínio, ouve-se o Jornal Nacional que o porteiro assiste na pequena TV. Eles repetem a notícia do ônibus desgovernado. Mais detalhes, requintes sobre o esmagamento craniano, uma criança dilacerada.
No restaurante, a garçonete explica que o pedido deve ser feito através do tablet, que está instalado num suporte no canto de cada mesa. Um canal de notícias, parecido com aquele da academia, informa que a Valesca Popozuda vai fazer um novo videoclipe e que a cantora Anitta é o novo hit nas festinhas infantis.
Dicas de depilação com cera e mais detalhes sobre o acidente. A foto de um braço caído ao lado do carro aparece no instante em que a garçonete serve o sashimi de atum. Ele não perde o apetite, mas pede para desligar a tela. Eles concordaram em não mexer no celular enquanto comem, mas a tela na mesa ao lado chama sua atenção, magnética e atraente como aquelas frases e imagens dos outdoors colocados nas avenidas.
Chega em casa e recebe os pais, que acabaram de voltar de uma viagem de navio, passam uma noite ali. Estão bem dispostos, falantes, parecem até mais jovens e otimistas. Ele pergunta se o barco tinha monitores. Sim, mas só com documentários, futebol e imagens de pinguins.
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Vai dormir pensando naquelas aves do frio. Sonha com um pinguim depenado no gancho do açougue, helicópteros acuando pinguins, pinguins alvejados em tiroteio. A cabeça de um pinguim lembra do rosto do homem decapitado. Vê aquela cabeça dentro de uma sacola de supermercado, num canto da praça.
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