“Estão os pássaros cantando lá no Sul?”. Vou me apropriar do início do famoso poema do T. S. Eliot e mudar uma palavrinha, o mês: “Janeiro é o mais cruel dos meses”. Ao menos para os catarinenses: as praias sem balneabilidade, o aumento da violência, as viroses, os rios e fossas transbordando, a falta da água, a má educação e espírito camicase dos motoristas (catarinenses ou não), congestionamentos nas rodovias estaduais em todas as regiões, os fogos rasgando o céu a todo instante, a alta dos preços em produtos e serviços, a falta de estradas e aeroportos que comportem de verdade nosso fluxo turístico e, claro, o despreparo das instâncias governamentais, de todas as esferas, para lidar com tudo isso. “Estão os pássaros cantando lá no Sul?”. Assim começa o segundo ato da famosa peça do Eliot, Crime na Catedral. Por enquanto, sim, Eliot, eles cantam, mas não sei por quanto tempo.
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“Além de gênio da música, David Bowie era um grande leitor”
Letícia Kuerten lança livro que estimula crianças a brincarem mais
Sangue
Por mais que tenhamos delírios de desenvolvimento, para os latino-americanos não é fácil apagar algumas centenas de anos de escravidão, saques, má educação, ditaduras atrozes, muito sangue e todo o tipo de injustiças. Por isso tenho me debruçado nos últimos anos, e com muita atenção, na literatura (especificamente contemporânea) produzida nesses países pilhados séculos e séculos por portugueses e espanhóis. Reli (sim, é daqueles livros que melhoram na releitura) nas férias o romance A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, do dominicano radicado em Nova York Junot Díaz, que narra a história de três gerações dos Cabral, a família do nerd Oscar Wao, e suas relações com a República Dominicana. É um livro engraçado e brutal que retrata a série de desgraças da família, mas também dá uma aula de história: o sanguinário e truculento regime de Trujillo é descrito em seus pormenores, assim como o preconceito dos dominicanos com os haitianos (Trujillo inclusive foi responsável por um genocídio contra eles). A sexualização precoce e o machismo (tão peculiar aos brasileiros) são também a tônica: “Em Santo Domingo não se pode contar nem com energia elétrica, nem com a lei, mas, com sexo, sim”. O Brasil aparece em pequenos flashes: a novela Xica da Silva faz sucesso por lá e a prostituta que sela o destino de Oscar Wao é fã de Paulo Coelho e fora amiga de uma transexual brasileira em Berlim. Recheado de referências aos quadrinhos, ficção científica e com uma pitada de realismo mágico, o livro foi eleito por uma equipe de críticos literários da BBC Arts o romance mais importante publicado entre 2000 e 2014. Estava lendo uma parte terrível dele quando soube do assassinato da criança indígena em Imbituba, a poucos quilômetros de onde eu estava. Fiquei muito mal e me perguntei: “Estão os pássaros cantando lá no Sul?”.
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Obras raras da literatura de Santa Catarina em novas edições
Diário de um leitor
O Fim de Tarde de uma Alma com Fome, de Sérgio Medeiros: um soldado se distancia de seu pelotão e encontra uma senhora com roupas de ginástica, que muda de nome (Alma – Anta – Velha) nos três atos deste poema dramático, ou nô indígena (que estabelece paralelos com o Popol Vuh maia-quiché e os clássicos amazonenses Macunaíma e Jurupari). Medeiros, professor da UFSC, vem construindo um dos projetos mais sólidos da literatura brasileira contemporânea, dialogando com a culturas ameríndias e americanas em gêneros como o conto, a poesia e o teatro.
O Princípio de Ver Histórias em todo Lugar, de Leonardo Villa-Forte: depois da ótima coletânea de contos O Explicador, Villa- Forte estreia brilhantemente na narrativa longa com essa delicada história sobre o ciúme e a imaginação. O equilíbrio de um jovem casal é abalado com a ida dela para Munique, a trabalho, justamente na sede da empresa onde o antigo namorado trabalha. Algumas evidências, antes de sua partida, como um poema anotado por ela e uma canção, tratam da retomada de um antigo amor, o que acende o alerta vermelho do melancólico narrador, um publicitário sem brilho. Com a constância do ciúme e da insegurança, ele resolve voltar à literatura e dar uma oficina literária em sua casa: é onde as histórias dos alunos e de seus contos reforçam o mosaico de obsessões deste inventivo romance.