Minhas férias terminaram na segunda-feira: preciso esquecer os dias de ócio muito bem curtidos na praia da Gamboa e tentar cumprir a lista de promessas que fiz no final do ano passado. Uma lista enorme de livros para ler e reler, outra de viagens, outra de filmes, a de discos e outra de… Listas que não acabam mais.

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Em A Vertigem das Listas, o escritor italiano Umberto Eco sustenta de modo pragmático a necessidade de se construírem listas, pois elas ajudaram a moldar a sociedade como a conhecemos. “A lista é a origem da cultura. Ela faz parte da história da arte e da literatura. O que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível. Ela também quer criar ordem, nem sempre, mas com frequência. E como, enquanto seres humanos, lidamos com a infinitude? Como é possível entender o incompreensível? Através de listas, através de catálogos, através de coleções em museus e através de enciclopédias e dicionários. Nós também temos listas totalmente práticas — listas de compras, testamentos, cardápios — que, a seu modo, também são conquistas culturais”.

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Uma das prioridades nas minhas listas, especificamente na “saúde a mil”, é chegar menos gordinho no verão. Embora as dobrinhas da barriga sejam boas para apoiar livros, olhar para os lados e ver os tiozões com 20 anos a mais e 20 quilos a menos é deprimente. Afinal, vivemos na era do corpo, que encontra em Merleau-Ponty e sua ideia do corpo como sensível exemplar, do único e verdadeiro artífice da realidade, alguma espécie de ressonância. E vendo os tiozões na areia me lembrava da coletânea de contos O Corpo e outras Histórias, do anglo-paquistanês Hanif Kureishi, onde o texto que dá nome ao livro traz um sexagenário escritor e dramaturgo que se vê diante da possibilidade de transplantar sua mente experiente para um belo corpo de 25 anos (“As pessoas dedicam boa parte de suas vidas reparando no próprio corpo e no corpo alheio”). Todos os contos permeiam as relações/confusões entre pais e filhos num emaranhado de cultura pop, sempre com um registro literário sereno e reflexivo, capaz de iluminar com grande delicadeza a passagem do tempo sobre o corpo. Mas a verdade é que preciso desencanar, talvez ter um bom corpo com o passar dos anos não seja tão difícil. Creio que, difícil mesmo, é manter a qualidade artística, década a década, sem concessões, como fez um tal de David Bowie.

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A lista de Bowie

Chorei quando soube da morte do Bowie, na segunda. Menos uma estrela brilhando. Além de um gênio da música, era um grande leitor e em 2013 divulgou no seu site oficial uma lista com os cem livros que mais lhe marcaram. Estão lá clássicos como A Laranja Mecânica do Anthony Burgess, o Madame Bovary do Gustave Flaubert, Ilíadado Homero, Berlin Alexanderplatz do Alfred Döblin, O Estrangeiro do Camus, O Mestre e a Margarida do Mikhail Bulgakov, Lolita do Vladimir Nabokov, Herzog do Saul Bellow, O Grande Gatsby do Fitzgerald, A Terra Desolada do T.S. Elliot, 1984 do George Orwell, Maldodor do Lautréamont, On the Road do Jack Kerouac, Inferno do Dante e muitos outros. Na lista também apareceram muitos autores contemporâneos, como Junot Diaz, Martin Amis, Don DeLillo, Michael Chabon, Tom Stoppard, Camille Paglia, Julian Barnes e Ian McEwan, o que certificou que Bowie acompanhava de perto a produção atual.

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Listando

Após ser abandonado por Laura Lydon, sua última namorada, Rob Fleming (dono de uma loja semifalida de discos de vinil) faz um balanço das cinco piores separações da sua vida: Alison, Penny, Jaskie, Charlie e Sarah (Laura, uma advogada bem-sucedida e atraente, ficou fora da lista por não ter provocado muito sofrimento). Depois, Rob busca consolo com os balconistas de sua loja, Bary e Dick, com os quais mantém conversas tipicamente masculinas sobre outras listas e passa a listar quase tudo que a memória alcança: melhores filmes, melhores episódios do seriado Cheers, melhores músicas etc. Esse é o enredo de Alta Fidelidade, do inglês Nick Hornby, que suscita a todos a fazerem suas listas, como uma forma de reflexão e reciclagem de sentimentos. Mas bem pode ser o enredo de uma vida qualquer, a minha, a sua, a do vizinho, pois listar é fazer escolhas e correr riscos, as duas coisas que mais fazemos durante essa dura vida (cheia de alegrias, fúrias e tristezas, como as músicas do mestre David Bowie).