O escritor Juan Carlos Onetti soprara certa vez que os livros são feitos daquilo que nos falta, e fiquei pensando horas e horas sobre a dimensão metafísica dessa frase, até que por fim resolvi escrever um livro sobre aquilo que mais me faltava: cabelos. A erosão e o desmatamento capilar provocado pela genética (confesso que bebi e fumei demais também) fez com que eu chegasse num estágio foucaultiano. E hoje, se resolvesse deixar o pouco que me resta crescer, ficaria muito parecido, mas muito mesmo, com o palhaço Bozo: asas capilares à direita e à esquerda. Mas o fato é que pensei em escrever um romance intitulado O Homem sem Qualidades Capilares, um contraponto ao famoso romance do Robert Musil, em que um tufo de cabelos chamado Ulrich tenta, de todas as maneiras, ascender socialmente sob uma careca lustrosa. Mas ao terminar o primeiro capítulo desta que seria minha verdadeira obra-prima, me informaram do lançamento de História do Cabelo, do Alan Pauls. Realmente fiquei indignado! O que levaria um dos autores com o cabelo mais bem aparado e tratado da literatura contemporânea mundial a escrever sobre esse tema que aflige escritores tão carentes (de cabelos) como eu? Entenderia se fosse o César Aira, que experimenta na literatura, porém tem corte de milico, mas o Alan Pauls e seu cabelo perfeito? Não me zangaria também se fosse o Ricardo Piglia a escrever, com seu estilo capilar George Washington.
Continua depois da publicidade
Minha Luta, o controverso livro de Hitler, terá novas edições
“Eu encaro cada início de ano como um texto”
Comprei o livro e me preparei para uma guerra difamatória: estava disposto não só a mover uma intensa campanha crítica como também ir até a cidade do autor e extorquir o cabeleireiro dele para deixá-lo com a mesma densidade capilar do Joca Reiners Terron. Mas ao ler o livro, a primeira coisa que descobri foi que Pauls é, como eu, um obcecado por cabelos (por motivos diferentes, obviamente). E já no primeiro parágrafo soube que estávamos do mesmo lado: “Não passa um dia sem que pense no cabelo. Se deve cortar muito, pouco, cortar logo, deixar crescer, não cortar mais, raspar, rapar a cabeça para sempre. Não existe uma solução definitiva. Está condenado a lidar, volta e meia, com o assunto. Assim, escravo do cabelo, quem sabe, até bater as botas”. E descobri um novo ditado: até que a morte e o cabelo nos separe. “Há um momento na vida em que ele começa a pensar no cabelo como outros pensam na morte. Sabe-se que existe a morte como se sabe que o destino de todo corpo é decair ou que a água, numa determinada temperatura, transforma-se em vapor. É uma certeza invisível, administrada diariamente e em doses tão infinitesimais que perde consistência, confunde-se com o contínuo da vida¿”.
Ex-diretoras da Cosac Naify criarão nova editora
Continua depois da publicidade
Confira quatro novidades que já estão nas livrarias
Rendido aos encantos estilísticos-capilares de Pauls e inspirado em ensaios de Sebald e Lars Iyer, resolvi produzir uma série sobre como os cortes de cabelos dos escritores refletem na criação literária, propondo uma leitura que chamo de crítica capilar, para complementar os estudos de crítica genética. Um dos ensaios mais densos e documentados, refere-se ao autor Alejandro Zambra, que nos últimos anos mudou seu corte de cabelo na proporção de cada lançamento. Outro é sobre a fidelidade capilar do escritor húngaro Peter Esterházy, que há décadas mantém o mesmo corte e penteado, numa espécie de homenagem silenciosa ao músico Beethoveen. Já em O Calvo Solar investigo porque Goethe, Shakespeare e Miguel de Cervantes pareciam ter grandes testas, quando na verdade eram apenas “leves calvos frontais”. Esses ensaios revelam o caráter lítero-capilar de muitos autores, mas também que a literatura é feita sobretudo de inveja e sonho, e não há sequer um dia que não penso em ter um cabelo como teve o Samuel Beckett.