Nenhuma virada de ano na literatura contemporânea foi tão melancólica e angustiante quanto a do narrador de A Morte do Pai, a primeira parte do calhamaço do escritor norueguês Karl Ove Knausgard. O jovem tenta uma carona em meio à neve, numa sequência de desventuras que já prenunciavam a falência de suas relações afetivas futuras. Knausgard é um artista do cotidiano, capaz de fazer você se interessar pelas coisas mais banais, e com esse livro construiu uma bela narrativa sobre a arbitrariedade da vida. Confesso que fico ansioso a cada final de ano, perdido, como o jovem supracitado, pois a mesma angústia que sinto ao terminar ou começar um livro invade cada partícula minha e a dança do calendário me exaspera: 29, 30, 31 e plim: 1º de janeiro de 2016.

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Todos os anos fazemos as mesmas promessas, os mesmos brindes, e é este o lado divertido e triste da vida: repetir os erros, os mesmos erros. Eu encaro cada início de ano como um texto, sim, como um texto. Pois quando você começa a escrever um conto ou romance, acha que sabe onde quer chegar, planeja o futuro dos seus personagens… Os capítulos… Tudo! Mas logo as coisas seguem outros caminhos, o personagem que era secundário parece ter “mais vida” e vai conquistando espaço, as situações que você imaginou se mostram banais, e os textos vão “se reescrevendo”. Na vida também é assim, por mais que você tente esquematizar ou planejar, as situações sempre acabam fugindo do seu controle. É como escreve o israelense Amós Oz no seu livro Conhecer uma Mulher: “Todas as pessoas, todos os atos, os atos de paixão e ambição, as fraudes, a sedução, acúmulo, evasão, os atos de malícia e de fracasso, a competição e adulação e a generosidade, os atos destinados a impressionar, a despertar a atenção, para serem gravados na história da família, ou do grupo ou do povo ou da humanidade, os atos insignificantes e os atos generosos, os calculados e os incontroláveis, os maldosos; quase todos levam sempre a um ponto onde não se pretendia chegar”.

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Mas talvez a minha maior batalha neste período seja contra a minha gula: exagero em todas as medidas e me transformo imediatamente num Balzac (o rechonchudo escritor francês, além de ser bom de garfo, criou personagens que não se contentam em comer e comentar a qualidade do que comem, mas trocam receitas e dão conselhos sobre a melhor maneira de comprar os alimentos e cozinhar os pratos). “Dèlice, mon dieu!”, diria, com metade do conteúdo de uma travessa de peru no prato. Tenho que cuidar para não me transformar em Pons, personagem do autor em O Primo Pons, que em virtude de impenitente gula é constantemente humilhado pelos parentes, que ele visita todos os dias em busca de comida. Mas não cheguei a esse ponto ainda não, pois tenho medo daquele provérbio inglês que diz que o glutão cava seu túmulo com os próprios dentes.

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Diário de um leitor

Viver (não) É Tudo, de Alcides Buss: nascido em Salete, no Alto Vale do Itajaí, mas radicado há muitos anos em Florianópolis, onde foi professor e diretor da Editora da UFSC, Buss publicou mais de 20 livros de poemas nas últimas décadas e é um dos poetas mais celebrados do Estado. Sua última obra é justamente um olhar para o tempo, físico e metafórico, com um farfalhar de calendários e desejos, onde o corpo é sempre um vestígio do dia: “Na praia, todos se mostram./O corpo, poesia reclusa,/agora se abre à volúpia/pública./Em cada porção de pele/passeia um oceano difuso…/Ai, o anzol clareia a garganta/cósmica”.

Terra Avulsa, de Altair Martins: um homem que funda seu próprio país em um apartamento, é esse o movimento heroico que o tradutor Pedro Vicente, após ser assaltado por dois homens, decide seguir. Esse é o mote do último romance do escritor gaúcho. Trancado em seu apartamento, Vicente traduz poemas de um obscuro autor nicaraguense e, como se isso não bastasse, procura se tornar inanimado, como os objetos da casa. A narrativa mistura poesia, fotografia e prosa, e Martins corre todos os riscos possíveis. Se em alguns momentos o livro parece que vai afundar, surge ainda mais vigoroso na página seguinte, numa experiência cíclica e enviesada. E tudo num complô contra a literatura, pois a arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados, como já disse o sábio Gombrowicz.

Limonov, de Emmanuel Carrère: maravilhoso como Carrère consegue biografar alguém tão singular quanto Limonov (poeta punk, romancista, mendigo, mordomo de um bilionário e político russo) partindo de textos do próprio personagem, mas com um olhar imparcial e traçando paralelos com a sua própria vida. Uma ficção sobre a verdade ou uma verdade sobre a ficção? A única certeza é a do retrato desesperador da Rússia de ontem e de hoje.