Nos anos 1950, o médico húngaro e especialista em Bach Sándor Lénard comprou uma farmácia no interior de Santa Catarina, em Dona Emma, no Alto Vale do Itajaí. Trouxe a esposa, a italiana Andrietta. Vítima de duas guerras (a primeira o moveu da Hungria para a Áustria, e a segunda, para a Itália) e com receio de uma terceira Guerra Mundial (provavelmente nuclear, tendo EUA e URSS como protagonistas, e a Europa, como tabuleiro), encontrou neste refúgio a paz para seus estudos e escritos. Com pleno domínio de 12 idiomas e uma tradução reconhecida mundialmente no currículo (a do inglês para o latim de O Ursinho Puff, do Milne), Lénard silenciosamente construiu uma carreira ímpar: seus livros saíam na Alemanha, Hungria e Itália, mas com pouco ou nenhum alarde aqui.
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O sol também se levanta
Somente em 2013 essa grande injustiça foi corrigida, com o lançamento de O Vale do Fim do Mundo pela Cosac Naify, na esmerada tradução de Paulo Schiller (o responsável por indicar a obra à editora). Originalmente publicado em 1967, na Hungria, o livro é um passeio pela história do nosso Estado, mas sobretudo um retrato do colono catarinense e do que é viver numa pequena cidade. “O colono de Santa Catarina não é diferente de outras pessoas responsáveis pela própria sorte, que trabalham com as mãos; talvez conheça melhor os animais, as variações do clima, as sombras das árvores que mostram as horas, e menos o que fica para além da cerca, do vale. É infinitamente desconfiado…”. Lénard soube mesclar erudição e mordacidade, nesse livro híbrido, parte ensaio e parte romance desmontável: essencial para entender a formação da cultura catarinense pelo olhar de um olhar estrangeiro. “Filho de Santa Catarina? O que isso significa? O que podemos entender portanto por catarinense?”.
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Diário de um Leitor
Sírinx – Monólogo de um Imortale Antiface, de Pedro Port: as duas obras contam com desenhos de capa do artista catarinense Rodrigo de Haro e desvelam toda a erudição da poesia de Port (gaúcho radicado desde 1973 em Florianópolis). Sírinx é um livro de um poema só, que narra toda a beleza e o deslumbramento do deus da mitologia grega Pan pela ninfa Sírinx por meio de estrofes curtas e certeiras. Já Antiface reúne poemas que investigam os arquétipos da cultura ocidental, especialmente greco-romanos e ibero-americanos, com grande ironia e perspicácia. São duas belas homenagens aos berços da nossa mitologia e literatura.
Um Dia Toparei Comigo, de Paula Fábrio: seu livro de estreia, o ótimo Desnorteio, ganhou o prêmio São Paulo de Literatura 2013. Com um olhar melancólico sobre as relações amorosas e a solidão, seu segundo romance é um belo diálogo com Vozes de Marrakesh, do Elias Canetti (aliás, a epígrafe do livro é dele). Isabel, a narradora, e sua namorada, Virginia, deixam para trás o Brasil e empreendem uma viagem por Barcelona, Madri e Paris, pois “viajar é uma forma de sonhar. Também um modo de fugir. Um velho truque para ser outro. Ou na verdade, para ser você mesmo”. Recheado de excelentes referências literárias, Fábrio escreveu um dos grande livros do ano, sobre a nossa única grande viagem, para a morte, que fazemos diariamente com calma e resignação.
Assim Começa o Mal, de Javier Marías: obras como Coração tão Branco, Os Enamoramentos e Seu Rosto Amanhã já haviam colocado o espanhol na confortável posição de ser um dos poucos escritores mundiais a aliar uma legião de fãs e vendagem excepcional com o sucesso de crítica. Seu último livro reforça o coro: situado no início dos anos 1980, na era pós-Franco, trata das incertezas e desventuras do jovem Juan Vere, contratado como assistente de um diretor de cinema, e como passa a agir arbitrariamente e a influir na vida de seus protetores. Um belo ensaio sobre o desejo e o rancor, que vai ao encontro da célebre frase shakespeariana: quando começa o mal, o pior fica para trás. Livraço.