Talvez inveja do nosso paladar filisteu. O enólogo fala, nós desconfiamos. Como ele abstrai tantos adjetivos de um gole? Tudo bem, gole, contemplação, narinas enfiadas na taça, os 47 sentidos reunidos. Ainda assim. É muita palavra para um vinho só.
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Então ironizamos os adjetivos, desdenhamos as descrições. De vez em quando por um motivo melhor que a inveja, é verdade. Muitas vezes, é mais o nosso pequeno protesto contra a afetação desse mercado bilionário fetichista com sabores pontuados de 0 a cem.
Se nos piores momentos a enologia é uma overdose de marketing, em todo caso, nos melhores tem muito de literatura. Eu digo, uma verbalização inspirada de uma degustação vale no mínimo por um bom haicai. É quase um novo microgênero literário, aliás, se a gente pensar também na quantidade de enólogos escrevendo nos últimos anos.
Desse ponto de vista, a enologia tem muito a crescer, a ser incentivada. Que se multipliquem os adjetivos excêntricos! Uma vez ouvi o Renato Machado chamando, na TV a cabo, acho que GNT, um vinho de “travesso”. Posso dar 750 palpites sem chegar perto do que ele quis dizer, mas o que importa é exercitar a imaginação. Um vinho travesso. Que definição pós-moderna, dizendo nada e tanto ao mesmo tempo!
De fato. Por que ficar só em “ácido”, “encorpado”, “elegante”, “frutado” e mais quatro ou cinco opções tradicionais? Na Wikipédia, a entrada “wine taste descriptions”, ainda sem versão em português, elenca mais de 60 adjetivos como “vazio”, “expressivo”, “reticente”, “gordo”, “rechonchudo”, “decadente”, “flexível” e “coriáceo”, em referência à consistência do couro. São palavras lá com a sua liberdade poética mas também evidentes raízes reais. Um vinho gordo é cheio de corpo e com um senso de viscosidade. Um reticente não tem muito aroma ou buquê. O decadente é o que, apesar de relativamente jovem, já passou do auge. Etc. “Travesso” ainda não consta. Renato Machado, estou dizendo, é um enólogo avant la lettre.
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Todos esses adjetivos ajudam a criar um imaginário de vinhos-personagens. “Me vê um tinto decadente”, talvez eu diga uma noite no restaurante, com humor sombrio.
Adjetivos, de qualquer maneira, vale lembrar, são apenas uma parte do mérito literário. Temos toda aquela mescla de frutas para buscar na memória. Temos as notas trufadas, o alto teor de taninos, a “personalidade complexa” e outras grandes promessas descritivas. Na Espanha, por exemplo, comprei um tinto chamado Monólogo. O nome vem explicado em letras grandes: “Monologo es una obra en la que habla un solo personaje. Em este caso obra y personaje se han unido em un vino que nos habla de tierras riojanas, de abundantes lluvias invernales, de un verano caluroso y una vendimia [colheita] soleada, de aromas balsámicos, del sabor del regaliz [alcaçuz] y las especias. Todo ello entrelazado en un monologo que merece ser escuchado con todos los sentidos”.
Não tem uma força estilística? As chuvas abundantes, a colheita ensolarada, os aromas balsâmicos, um vinho que conta histórias imperdíveis de Rioja. Sou a favor dessa ambição. O vinho não é mais o mesmo. Você não toma um Monólogo só para saborear ou ficar bêbado. Você toma um Monólogo para escutar histórias nativas. Com imaginação, escuta até monólogos do melhor teatro espanhol, quem sabe um Don Juan falando sozinho diante da estátua de Dona Inês: “Inocente doña Inés, / cuya hermosa juventud / encerró en el ataúd / quien llorando está a sus pies”. Sei lá. Tudo é possível. Que se cruzem os gêneros.
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