O finlandês Stefan Kirchner, que também tem uma compatriota entre a tripulação do Arctic Sunrise, é especialista em direitos humanos e legislação marítima, alerta que a palavra “pirata” não é uma etiqueta que qualquer governo possa usar para propósitos políticos. Leia trechos da entrevista realizada por e-mail na sexta-feira:

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Zero Hora _ Que tipo de violação da lei russa e da lei internacional o grupo promoveu ao navegar naquela área e tentar escalar a plataforma de petróleo? É possível acusá-los de pirataria?

Stefan Kirchner _ A lei internacional do mar prevê uma zona de exclusão com raio de 500 metros ao redor de instalações em alto-mar como essa plataforma. A zona de exclusão russa é maior, violando a lei internacional. Os ativistas do Greenpeace estavam dentro dessa zona de exclusão de 500 metros e tentaram subir na plataforma. Essencialmente, tudo o que eles fizeram de errado foi estar em um lugar onde não deveriam. Essas zonas de exclusão existem para evitar acidentes; assim, entrar na zona de exclusão não foi uma ação livre de problemas na perspectiva da lei marítima. No entanto, o comportamento da tripulação do Greenpeace não caracteriza pirataria. Acusar os ativistas de pirataria não tem base na lei internacional. Na verdade, foi isso o que disse o presidente Putin na semana passada. Não considero que isso configure pirataria segundo a interpretação da lei internacional. A pirataria é o clássico exemplo de crime internacional e está fora da lei desde a antiguidade. Tanto a lei internacional quanto o Artigo 101 da Convenção dos Mares da Organização das Nações Unidas definem a pirataria, entre outros crimes, como “(…) quaisquer atos ilegais de violência ou detenção, ou qualquer ato de depredação, cometido com fins privados pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privada, e direcionados: ao alto-mar, (…) contra qualquer outro navio ou aeronave ou contra pessoas ou bens a bordo de tais navios ou aeronaves”. A plataforma petrolífera não é um navio, então, o artigo 101 não se aplica diretamente.

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ZH _ O que se aplicaria às plataformas marítimas, então?

Kirchner _ O contexto e a história da lei marítima deixam claro que não existe uma definição mais ampla que inclua as plataformas petrolíferas. A convenção da lei marítima se preocupa com instalações em alto-mar, que poderiam ter sido incluídas no artigo 101, mas não foram – porque as plataformas não são protegidas por leis contra a pirataria. É por isso que essa questão se torna tão clara quando se lembra que a liberdade de navegação dos mares foi uma regra chave da lei internacional por séculos. A ideia das Zonas Econômicas Exclusivas e etc é um conceito relativamente recente, do século 20, e é uma das exceções a essa regra fundamental. A pirataria ameaça essa liberdade de navegação, logo os navios (e, paralelamente, as aeronaves) são protegidos de interferência, e qualquer interferência constitui pirataria. Isso não quer dizer que o Estado na costa não poderia proteger suas instalações em alto-mar legalmente – longe disso. Subir na plataforma de petróleo pode ter sido invasão ou uma ação similar. Mas, certamente, não foi pirataria. Esse é um caso simples, isso não é pirataria. Da informação que tenho, a reação russa parece ser muito desproporcional.

ZH _ O que a diplomacia de outros países pode fazer nesse caso?

Kirchner _ As embaixadas estrangeiras na Rússia não podem intervir diretamente no caso, mas, se há violações dos direitos humanos, por exemplo sob a Convenção Europeia de Direitos Humanos ou sob o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, outros países podem responsabilizar a Rússia em foro internacional. Agora, o papel dos diplomatas estrangeiros é limitado, mas potencialmente importante no viés psicológico para aqueles que foram presos e são de outros países, e para suas famílias, porque os diplomatas podem garantir que há pelo menos uma maneira de verificar se a saúde e as demais condições dos prisioneiros são suficientes. No longo prazo, no entanto, os Estados terão de se pronunciar sobre o uso do termo “pirataria” nesse contexto.

Há mais um aspecto que penso ser importante. Pirataria, pirataria de verdade, é um problema sério. Que os ativistas sejam acusados agora de pirataria indica que pode haver uma incompreensão séria do conceito legal de pirataria – ou que a acusação simplesmente quer assustar futuros ativistas. Eles merecem nossa proteção contra piratas de verdade. Se a Rússia começar a usar o termo “pirataria” de uma maneira tão frouxa, temo que a luta contra os piratas reais possa enfraquecer no longo prazo. A palavra “pirata” não é só uma etiqueta que qualquer governo possa usar para propósitos políticos, e espero que a corte em Murmansk enxergue isso da mesma maneira.

ZH _ Há abuso de autoridade? As autoridades russas violaram os direitos humanos com essas prisões?

Kirchner _ Não há informação suficiente para responder a essa questão, mas a Rússia é obrigada pela Convenção Europeia de Direitos Humanos a garantir um julgamento justo. Obviamente, a Rússia é obrigada a garantir que todos os presos tenham acesso a serviços médicos caso precisem.

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ZH _ Há outros exemplos de casos similares de protestos em outros países em que as autoridades tenham detido os ativistas mas agido de uma maneira diferente?

Kirchner _ Em alguns países, isso teria sido um simples caso de invasão da propriedade alheia. Em muitos países, poderia haver uma pequena multa e não muito mais. É claro que há outros Estados que lidam de uma maneira bem mais dura com manifestantes. Mas o comportamento de outros países não serve como padrão neste caso. A Rússia tem obrigações legais internacionais, tanto com a lei marítima quanto com os direitos humanos. Não importa para a Rússia que outros Estados possam tratar muito pior os manifestantes, o que importa agora é que a Rússia cumpra suas obrigações, em especial em relação a um julgamento justo. A Rússia é signatária da Convenção Europeia de Direitos Humanos e tem a obrigação de garantir um julgamento justo. Se um julgamento já começa com acusações de pirataria que obviamente não têm fundamento, resta esperar que o resto do julgamento seja mais justo.

A tripulação do Arctic Sunrise não cometeu pirataria. Se eles violaram qualquer lei russa, não merecem ser tratados assim. Na verdade, é de se perguntar se eles ainda podem ser julgados com justiça se são acusados de algo que obviamente não cometeram. A Rússia é signatária da Convenção Europeia de Direitos Humanos e os tripulantes do Arctic Sunrise têm direitos – assim como todos na Rússia devem ter o direito de liberdade de expressão.

A Rússia está perfurando à procura de petróleo no Oceano Ártico, um dos ecossistemas mais sensíveis no planeta. Em minha opinião, é hora de a Rússia agir responsavelmente como uma grande nação do Ártico. Acusar manifestantes pacíficos de pirataria é um passo na direção errada.

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ZH _ Podem outros países como Grã-Bretanha, Brasil, Finlândia e Argentina, que têm cidadãos entre a tripulação presa na Rússia, subscrever ao processo iniciado pela Holanda na sexta-feira, de formação de um tribunal de arbitragem especial que está sendo criado apenas para este caso?

Kirchner _ Não. Não depende da cidadania dos integrantes da tripulação. A Holanda, como o país da bandeira do Arctic Sunrise é o único país que pode instituir esse procedimentos. Estou confiante de que este é um passo na direção correta porque mostra que apesar da retórica muito forte de algumas autoridades russas, esta é ainda uma questão essencialmente de direito internacional e que, eventualmente, o Estado de direito vai prevalecer neste caso.

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