Um bailarino também se constrói com farinha, açúcar e água. Jessé Cruz é prova disso. Mesmo que às vezes não houvesse outra opção no cardápio de casa, as memórias de infância são tão cheias de cores que inflam o peito do bailarino de 29 anos ao listar as performances no palco. Noivo de festa junina, “árvore”, Peter Pan, bailarino de contemporâneo e danças populares… De preferência, como protagonista, em um ensaio do agente transformador que se tornaria no futuro, sem esperar mudanças que não partissem do próprio esforço. Na infância, foi aluno de um projeto social que oferecia aulas de música, dança e teatro. Aos 12 anos, percorria mais de 28 quilômetros entre Boituva e Tatuí, no interior de São Paulo, para estudar no Conservatório Dramático e Musical, em um programa pré-curso técnico de artes cênicas.
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– Meu pai era pedreiro, mas também tocava e cantava moda de viola em um circo. Então, ele estava no meio da arte, entendia e me incentivava – recorda.
Apesar do apoio, não havia recursos financeiros para financiar o sonho de artista do filho caçula. Às vezes, era com R$ 20 no bolso que Jessé partia, já adulto, para fazer cursos e participar de mostras de dança em São Paulo. Dormir em banco de praça, com medo de ser confundido com morador de rua, era prática cotidiana. Foi pensando nas privações que ele mesmo passou até conseguir o diploma de graduação em artes que, em 2010, criou um mutirão para arrecadar R$ 500 na ONG onde havia estudado na infância e da qual havia se tornado professor. A ideia era viajar com quatro alunos que se destacavam nas aulas de dança para que pudessem ver o Festival de Joinville de perto e aproveitar o período para realizar uma audição na Escola Bolshoi.
– Eu só precisava do suficiente para alimentação, hospedagem e o combustível, porque iríamos no meu carro. Mas, no fim, consegui R$ 50 – conta Jessé.
A frustração pela falta de apoio virou força geradora para uma mudança de vida. Jessé bancou a viagem do próprio bolso, chegou a Joinville em uma madrugada gelada com quatro meninos de nove a 14 anos que dormiram no carro estacionado nos fundos do Centreventos Cau Hansen e tomaram banho no chuveiro do Teatro Juarez Machado antes de participarem da seletiva do Bolshoi. Dos quatro meninos, três foram aprovados. Quando o novo ano chegou e não havia ninguém para se mudar com as crianças para Joinville, Jessé assumiu a missão, deixou o antigo emprego e virou “pai” aos 21 anos.
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– Eu podia estar querendo fazer festa e curtir a juventude, mas tinha que pagar aluguel e cuidar deles. Os pais não tinham condições nem de mandar dinheiro para ajudar.
Com um emprego de professor temporário na rede pública de Joinville e outro como artista do Parque Beto Carrero em Penha, Jessé passava a semana correndo e torcendo para nada ruim acontecer. Na segunda e na terça, dava aulas de artes nas escolas; na quarta, partia para Penha e monitorava de longe enquanto Roni Campos, de 14 anos, cuidava da casa e de Gustavo Henrique, nove anos (o terceiro aluno aprovado desistiu e retornou para casa depois de um semestre). No sábado, voltava para levar os filhos “adotivos” para o alojamento dos artistas do Beto Carrero, para evitar a distância no fim de semana. Na segunda-feira, começava tudo de novo.
Sete anos depois, Roni também tornou-se artista do parque, Gustavo está concluindo o ensino médio e seriam necessárias muitas páginas para detalhar o currículo que Jessé adquiriu. Foi jurado no Dança Catarina, projeto que rodou o Estado com aulas e concursos de dança; ganhou prêmios no Festival de Joinville e trabalhou nos bastidores do evento; atuou como professor e coreógrafo convidado da Escola Bolshoi e, agora, assume a coordenação do curso técnico em dança do governo do Estado, posição que ocupa também no curso técnico de uma escola particular e de dois cursos de pós-graduação.
– As pessoas dizem que eu quero estar em todos os lugares, mas meus pais me ensinaram a estar sempre em atividade e a sempre trabalhar pensando no outro. Então, não vivo apenas pelos meus sonhos e, com isso, fui construindo a minha vida.
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