Engolir o choro e sorrir em meio à dor são habilidades inerentes ao bailarino. Da plateia, ninguém pode imaginar que os movimentos executados no palco não são naturais, quase inconscientes, pequenos voos projetados pela trilha sonora do espetáculo. A luminosidade dos figurinos e os rostos maquiados também funcionam como elementos para eclipsar que o caminho até o palco foi de rotinas extenuantes, com sacrifícios para se alcançar o corpo ideal e, em muitos casos, histórias de vida com barreiras que também levaram à dor e às lágrimas.

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Mais difícil ainda do que ser artista é nascer artista. Reconhecer um dom que é inerente e que exige voz, mesmo que o mundo inteiro queira calar. No caso do bailarino, o caminho é ainda mais cheio de espinhos. Ainda que existam outras profissões que demandem anos de estudos, esforço físico, dedicação quase exclusiva e preparo emocional, é na dança que todas estas exigências se encontram, com um diferencial: raramente haverá apoio incondicional ao redor de quem decide escolher esta trajetória.

– Você vê essa dedicação nos esportes, mas geralmente tem uma família apoiando. No caso da arte, tem quase uma rejeição – compara a psicóloga Marínea Fediuk.

Essa rejeição pode agir como uma porta fechada para travar talentos ou funcionar como alavanca, caso das histórias contadas nas páginas a seguir. Não são histórias tristes, ainda que seus personagens tenham memórias melancólicas. Muito mais do que episódios de abdicação, a dança é envolvida por momentos de superação e pela compreensão precoce de um sentido para a vida. É ela que faz um adolescente de 17 anos explicar que não pode cobrar muita perfeição de si mesmo porque a arte precisa que ele transmita o que sente.

– Não posso viver na pressão porque a dança não é só a técnica. Ela precisa ser fluida – descreve Thierry Gonçalves, morador de Santa Catarina depois que deixou o interior de São Paulo para estudar na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville.

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O paralelo da dança com o esporte, tão comum pela necessidade de forjar um corpo forte que será usado como instrumento principal, perde sentido quando uma música começa a tocar. É a relação da arte como espaço de afeto que garante o acolhimento de artistas mesmo quando não há nenhuma experiência, nenhuma referência anterior e nenhum suporte.

– Só pode ser o desejo – analisa a psicanalista Stella Brandenburg. – Na verdade, o desejo em duas formas: como um processo, o ato de dançar que impulsiona o bailarino a dançar porque é algo muito prazeroso; e a realização do desejo como ato consumatório, o momento em que aquilo que se deseja, se realiza.

Mesmo que a rotina de aulas e ensaios pareça se repetir – no caso do balé clássico, executando os mesmos movimentos —, Stella aponta que há sempre uma superação nova para motivar, com a criação de pequenos objetivos a serem alcançados dentro da meta principal.

– O bailarino dança porque está buscando algo, e esse algo que se busca é a experiência de satisfação, que é remetida a um “mais além”. E isso é singular para cada bailarino. Assim, no momento em que o bailarino consegue uma das satisfações, parte em busca de outra. O sonho de interpretar Giselle, o príncipe Siegfried, ou mesmo os 32 fouettés… Há sempre mais para se buscar. Um braço que pode ir mais longe, um adágio com mais emoção, um simples suspiro que pode se prolongar mais – explica Stella, ela mesma uma bailarina clássica na adolescência.

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Para Marínea, existe, ainda, a possibilidade do hiperfoco como explicação para que pessoas tão jovens estejam dispostas a realizar verdadeiros sacrifícios por uma paixão. É a certeza de ter encontrado o sentido para a vida, o grande sonho motivador que faz com que muitos passem anos procurando, mas nem sempre encontrem.

– Quando coloca um foco e fecha as outras possibilidades, a pessoa ganha força. Não importa se está ensaiando há horas, se não está saindo para onde gostaria, comendo o que gostaria. Abrir mão daquilo é como desistir de ser o que é, é como deixar de existir – afirma.

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