O promotor de Justiça do Piauí Francisco de Jesus Lima, que ingressou com ações após ter sido barrado em um evento realizado no Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), diz que a situação vivida no Estado foi o pior ato de racismo pela qual já passou. Segundo Lima, um dos seguranças pediu que ele aguardasse do lado de fora do hall de entrada para verificar a identificação, o que não teria sido exigido para nenhum outro participante da reunião.

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Lima, que atua há 22 anos como promotor, conta que nasceu na periferia de Teresinha “pobre e preto”. A primeira profissão, aos oito anos, foi de engraxate e depois trabalhou como camelô. Depois da situação em Santa Catarina, que, segundo ele “pouco ou nada mudou em relação ao racismo desde a época do poeta Cruz e Souza”, ele ingressou com ação para que o MPSC adote ações de enfrentamento ao racismo institucional. Além disso, quer que os responsáveis sejam identificados e punidos por crime de racismo.

Em nota, o MPSC diz que “repudia, com veemência, qualquer acusação sobre práticas discriminatórias praticadas por sua equipe de Recepção e Segurança”. E acrescenta que “todas as pessoas não identificadas estavam sujeitas a serem interpeladas pelos agentes de segurança – devidamente treinados para abordagens – e caso fossem estranhas ao evento ou ao quadro de servidores do Ministério Público Catarinense, eram encaminhadas à recepção para o devido credenciamento, onde deveriam apresentar documentos de identificação”. O órgão acrescenta que no período do evento, Santa Catarina enfrentava ações orquestradas por facções criminosas, “o que demandou reforço técnico na estrutura e rigorosa atuação dos procedimentos de verificação por parte da Casa Militar do MPSC bem como pela Coordenadoria de Inteligência e Segurança Institucional (CISI)”. Na nota ainda consta que membros do MPSC, no dia 4 de setembro, buscaram informações junto aos envolvidos e ao promotor. E que em reunião realizada no período “os fatos foram esclarecidos e Francisco manifestou compreensão”.

Lima conversou com o Diário Catarinense sobre o caso. Confira:

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O que aconteceu no MPSC?

Eu fui a Santa Catarina participar da 2ª Reunião Ordinária de Direitos Humanos promovida pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH) entre os dias 4 e 6 de setembro. Chegando lá no primeiro dia, me dirigi ao prédio do Ministério Público e quando eu fui à área de acesso dos elevadores, o policial me parou e perguntou para onde eu iria. Eu disse que iria para a reunião do GNDH. Ele me perguntou quem eu era e eu disse que era promotor de Justiça do Piauí. Ele disse que eu tinha que me identificar. Fui ao balcão, mas antes que eu tirasse minha carteira funcional do bolso, ele pediu para eu sair e aguardar lá fora. Eu fiquei aguardando nas cadeiras da lanchonete, até porque eu achava que ia ter todo um processo de identificação. Eu percebi que as pessoas ingressavam livremente sem nenhuma abordagem. Foi quando uma promotora do Maranhão, que já me conhecia, me viu e perguntou se eu não ia à reunião. Eu disse que estava esperando a liberação. Ela disse vamos e passei pela portaria. Eu perguntei ao policial por que pediu que ficasse lá fora e ele ficou em silêncio. Conversei com alguns colegas do grupo e todos disseram que não foi feita a exigência. No segundo dia, desci do táxi e comecei a fazer fotos da fachada e fazer gravações para registro futuro, para colocar no Facebook. Quando eu acesso a porta dos elevadores, o policial vem e pergunta rispidamente aonde eu vou. Eu disse que à reunião e quando eu vi já tinha outro policial atrás de mim. Isso é uma abordagem. Aí peguei minha câmera e comecei a filmar. Quando comecei a filmar ele adotou uma postura de recuo e justificativa. Ele disse que era um procedimento normal, aí eu disse “mas normal só a mim? Duas vezes? É questão de cor, você acha que todo negro é ladrão?”. Eu comuniquei ao grupo e procuradores do GNDH vieram me pedir desculpas, mas eu acho que é o tipo de situação que não tem que se pedir desculpas, tem que se tomar providências.

O MPSC, em nota, diz que o senhor não estava com identificação. Como foi isso?

Em nenhum momento houve exigência de crachá. Esse não é o primeiro encontro que participo. E quando eu subi [no evento] nenhum colega estava portando crachá ou foi identificado. Nenhum colega foi barrado para identificação. Depois tentaram me dizer que o problema é porque entrei filmando, mas hoje em dia todo mundo filma tudo. Depois tentaram me dizer que a segurança de um dia não era de outro, isso é pior. Porque se fosse só em um dia seria ser uma situação isolada de um policial, mas se aconteceu em outro dia, é de equipe. Tentaram me dizer que facções criminosas estavam intimidando autoridades aí, mas aí que deve haver exigência do cadastro. Me desculpem todos os catarinenses, sociedade brasileira, mas eu enquanto cidadão, promotor de Justiça, trabalho dando acesso, enfrentando violação de direitos humanos, não posso sofrer isso e ficar calado.

E o que foi feito?

Resolvi ingressar com alguns procedimentos. Um deles chama-se procedimento de controle administrativo junto ao Conselho Nacional do Ministério Público, que só tem um objetivo: apurando a veracidade dos meus relatos, que o Conselho determine ao MPSC que promova de forma permanente capacitações a servidores, promotores, e planos e ações de enfrentamento ao racismo institucional. Também representei ao Procurador-Geral de Justiça de SC para que identifique os responsáveis, os denuncie por crime de racismo e adote as medidas disciplinares necessárias. E meu advogado está estudando ingresso de ação para indenização por danos morais. Caso saiamos vencedores, irei destinar a indenização para entidades que promovam a igualdade da raça. Só me aliviou o peso psíquico depois que ingressei com as duas primeiras ações.

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Já tinha passado por alguma situação parecida?

Eu nunca fui tão magoado como nesses dois dias. Eu já enfrentei situação em loja, mas resolvi ali na hora. Agora de uma instituição que eu faço parte e que você espera que te acolha, te faça sentir seguro e conviver com isso não. Eu acho que tive até muita cautela. Não posso me calar, o problema não é mais meu, é social. Um dos poetas que eu mais admiro é Cruz e Souza, o único poeta negro do Brasil, filho de escravos, e ele tinha um sonho: ser promotor de Justiça. Em 1883, ele foi nomeado para ser promotor em Laguna e não pôde exercer porque era preto. 134 anos depois, sou promotor e não posso ter acesso. Então eu vi que nada mudou. Ou se mudou, mudou pouco. É a pior situação que eu passei na vida! Quando você chega em uma loja o atendente demora a lhe atender, isso enfrenta todo o dia. Quando você entra no banco as pessoas dão um olhar diferente. Mas não em uma instituição que deveria dar acesso.

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