Em romances, especificamente, poucos escritores insistem tanto em frases tão carregadamente líricas. Assim começa Terra Sonâmbula (1992): “Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeira. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca”. Segue, linhas depois, com “os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte” e uma estrada que não se entrecruza com nenhuma outra, “mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância”.

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As moscas que cercam os mortos da guerra são as “contratadas carpideiras dos ninguéns”, uma idosa fica “olhando a vida como um lugar que já foi seu”, o filho da jovem estuprada “nasceu sem que ela nascesse mãe”. Couto cria palavras, rebatiza sentidos. A corrente do rio é redemoníaca, as gotas do mar salpingam, a poeira acorda, os relâmpagos circuitam a noite, os amantes na penumbra da cozinha se comemoram, o bêbado fica aguardendo nos bafos.

É um universo Manoel de Barros e Adriana Falcão, mas em prosa, não em poesia. Tanta exaltação alastrada por 200 páginas de um romance poderia ser um virtuosismo cansativo, um solo prolongado de Paco de Lucía, mas a insistência subjetiva é indispensável para o desenrolar de Terra Sonâmbula. Em um Moçambique que por quase 30 anos (1965-1992) vivenciou as mortes, as misérias e o nonsense de duas guerras consecutivas, muitos dos sobreviventes de Mia Couto preferem habitar fantásticos mundos internos, se aferrando a lendas e reinvenções biográficas para validar suas vidas descartáveis.

Outro aspecto que marca tanto Terra Sonâmbula é a fronteira indefinida entre vivos e mortos. Nesse aspecto, Couto lembra o mexicano Juan Rulfo em Pedro Páramo. O excesso de mortos nos vilarejos desolados os torna inevitáveis no cotidiano. Os dois autores fazem com que mortos-vivos participem de diálogos, o que nem sempre atribuem a delírios ou imaginação dos vivos, uma forma de insistir na força das superstições locais.

Couto repete a abordagem no romance A Confissão da Leoa (2012). “Há muito que não vivo. Agora, deixei de ser pessoa”, diz Hanifa Assulua, uma mãe que perdeu as filhas. “A nossa aldeia era um cemitério vivo, visitado apenas pelos seus próprios moradores”, narra Mariamar, uma das protagonistas. A narrativa, de novo, confunde a separação entre mortos e vivos, fazendo refletir sobre as condições moribundas da vida moçambicana.

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Mia Couto é o vencedor de 2014 do prêmio internacional de literatura Neustadt, conferido a cada dois anos. Ele é dado por toda a obra do autor, que no caso de Couto não é pequena: entre poesia, crônicas, contos e romances, são mais de 20 livros. Vários ganhadores, entre eles García Márquez e Octavio Paz, receberam o Neustadt alguns anos antes de receberem o Nobel.

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