Na noite desta quinta-feira, João W Nery, considerado o primeiro homem transexual a ser operado no Brasil, participou de uma palestra na Universidade Federal de Santa Catarina, em Joinville. A atividade integra a programação da 3ª Semana da Diversidade, promovida pela Associação Arco Íris. Neste sábado, às 9 horas, João participa de uma roda de conversa de homens trans, no Museu de Arte de Joinville.
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Distante dos debates das salas de aula, a transexualidade é um assunto delicado e um tabu para parte da sociedade. João W Nery, de 66 anos, é uma das pessoas que sabe como falar. Não é à toa que ele escreveu dois livros sobre isso e que hoje passa 14 horas diárias na internet atendendo àqueles que o procuram para pedir ajuda, dicas e conselhos. Ele diz atuar como um psicólogo virtual.
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João se formou em Psicologia com identidade feminina. Ele assumiu a identidade masculina no período da ditadura, em uma época na qual os processos burocráticos eram diferentes e sua situação inusitada. Depois de sua cirurgia, ele não pode entrar na Justiça e trocar de nome. Foi aí que ele criou uma nova identidade masculina, como se nunca tivesse tirando uma identidade antes. Ele ficou com dois CPF’s, um de mulher e outro de homem. Hoje, oficialmente, João é considerado analfabeto e por isso não leciona mais aulas em universidades como antigamente.
Crítico ao projeto de lei que institui o Programa Escola Sem Partido – porque acredita que é uma forma de repressão aos professores -, João defende um outro projeto apresentado na Câmara dos Deputados: o de lei de identidade de gênero, que leva seu nome, e foi apresentando pelos deputados Jean Wyllys (PSOL) e Erika Kokay (PT). O projeto é baseado numa lei argentina e consiste em permitir que uma pessoa trans vá até um cartório mudar seu nome e seu gênero sem precisar de cirurgia, “hormonização” ou laudo psiquiátrico. Para João, a lei poderia libertar os transexuais.
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– Somos considerados doentes mentais. A lei liberta completamente os trans. O maior problema das pessoas transgêneras é a documentação. Sem um documento, você não é um cidadão. O nome social não te libera de certos constrangimentos, é um nome fantasia, não é um nome legal. Pouca coisa pode se fazer com um nome social – afirma.
Confira a programação completa da 3ª Semana da Diversidade de Joinville
João se considera uma cobaia da ciência. Foi o primeiro homem transexual operado no Brasil. Ele fez duas cirurgias de redução de mama, uma em 1966 e outra em 1968. Em 1976, fez a retirada do útero e dos ovários. Já em 1977, fez a mamoplastia masculinizadora e uma neouretra, para poder urinar em pé. Tudo isso foi feito durante a ditadura militar no Brasil, de forma clandestina.
O problema do preconceito, para João, não se concentra num presidente ou no Senado Federal. Ele acredita que trata-se de um poder institucionalizado que perpassa todas as instituições.
– Nossa sociedade ainda está preocupada se uma mulher pode botar o seio de fora publicamente para amamentar seu filho. Eu já estou em outro nível. Há muitos homens trans casados com mulheres trans que não se operaram. Cada um trata o seu órgão da forma que melhor se sente, imagina e quer – defende.
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Samuel de Paula Gomes fala sobre sua participação na 3ª Semana da Diversidade de Joinville
João W Nery defende que sejam criadas alas para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTs) nos presídios do Brasil. Ele acredita que pela falta de comunicação, instrução e conhecimento, há muitos homens trans dentro dos presídios femininos que não sabem que são trans. Em seu livro Viagem Solitária – Memórias de um transexual 30 anos depois, ele tenta esclarecer a população sobre o que é “ser um trans numa sociedade que considera isso uma doença mental”.
– É um assunto desconhecido para a maioria. Poucos sabem falar e escrever sobre isso. Uma das coisas mais importantes é que a família aceite. Infelizmente, a família não está preparada para aceitar seus filhos trans nem gays. Sou casado há vinte anos com a mesma mulher. Sozinho eu fico no caixão. Na vida, eu quero compartilhar. Adoro ser casado, adoro dividir. O bom do amor é que você pode amar várias vezes.
Confira outros trechos da entrevista com João W Nery:
“Prefiro o trans na frente, o homem fica como mero adjetivo”
– Eu não sou um homem. Sou um homem trans. Sou um trans homem, como eu gosto de me tratar. Prefiro o trans na frente, o homem fica como mero adjetivo. Eu nunca serei um homem. Não porque não tenho um pênis, isso não me faz menos homem. Não quero ser um homem dessa cultura, não fui criado como homem. Trago uma herança feminina que eu quero manter, porque eu prezo ela. Sou um cara feminista, luto a favor das mulheres. Não sou um ativista só LGBT, sou um ativista dos direitos humanos. Luto por todas as discriminações, sejam elas raciais, de gênero, etárias, étnicas. Acho que o preconceito é uma ignorância, é uma falta de conhecimento do assunto.
Pluralidade entre os homens trans
– Nem todos os homens trans pensam como eu. O fato de você ser trans não te faz ser como outros trans. As pessoas são diferentes. Eu saio do padrão. Sou um cara que defende o não binarismo. Binarismo é aquela pessoa que só aceita homem e mulher. Há trans homens não binários que usam saia e batom, mas nem por isso deixam de se sentir do gênero masculino e que tem um lado feminino em termos de roupa, de conduta. Uma identidade não diz nada sobre você.
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Responsabilidade de ajudar outras pessoas
– Passo 14 horas diárias no Facebook. Virei um psicólogo virtual. Tenho um perfil que eu só admito trans homens. Eles me procuram para todos os níveis de dificuldade. É uma coisa muito séria, o desespero, a tentativa de suicídio é de 47%, de acordo com alguns estudos. Tenho a responsabilidade de dar alguma resposta.
– Muitos me chamam de pai. Muitos se descobrem lendo meu livro, vendo minhas entrevistas na mídia. Sou uma figura que eles respeitam, muitos me seguem, me consultam. Além disso, sou psicólogo. Sou um cara completamente aberto.
– Faço uma lista de profissionais, de advogados, psicólogos, endocrinologistas, de cirurgiões e ginecologistas. Os ginecologistas não estão preparados. Até dentro do SUS, como é considerado uma especialidade unicamente feminina, um homem trans que trocou seu nome para o masculino não consegue ser atendido, porque o sistema lê como fraude o nome masculino dentro da ginecologia. Isso é uma das nossas lutas dentro das políticas públicas. Não é tão difícil assim mudar um sistema.
Lei João W Nery
– Ainda não foi votado porque não há condições com esse Congresso tão conservador, de passar qualquer lei de direitos humanos. Está aguardando um momento mais propício para ser votado. É um projeto muito importante baseado na lei de identidade de gênero argentina e que consiste em permitir que uma pessoa trans vá até um cartório mudar o seu pré nome e o seu gênero sem precisar de cirurgia, hormonização ou laudo psiquiátrico.
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Ditadura
– Já vivi a primeira ditadura em 1964. Sei como ela é e estou farejando que estou vivendo uma segunda. Desde as prisões desses meninos? desde quando você não pode se manifestar dentro de uma democracia? Você tem que ser preso porque se manifestou? É o que tem acontecido. Prenderam jovens porque se manifestaram. Isso é um absurdo. O próprio presidente, que não foi eleito, que comeu o meu voto e de mais de 54 milhões de pessoas, não quer ser chamado de golpista. Ele não tem esse direito, já que é o que ele fez. Ele andou dizendo que as manifestações contra ele têm 40 pessoas. Basta ligar a televisão, nos canais fechados, que mostram a quantidade de pessoas na Avenida Paulista, em todo o Brasil, aqui em Florianópolis também.
– Meu pai foi caçado, foi exilado. Eu fui anistiado muitos anos depois. Tive essa vivência política. Fui para o Uruguai, conheci o Darcy Ribeiro, João Goulart, Brizola, todos esses políticos. Eu tinha uma aproximação íntima, por ser filho de exilado e por estar no Uruguai. Estive em Brasília, a convite da Comissão de Anistia e da Comissão Nacional da Verdade. Claro que sou totalmente favorável que se apure cada vez mais. Perdi vários amigos torturados, minha irmã foi torturada. Minha irmã esteve presa no Estádio Nacional de Chile, na época da ditadura do Pinochet.
Atual momento político do país
– Hoje há um adendo mais sério que não havia em 1964, que é a questão religiosa. Já havia naquela época a tradicional família, haviam passeatas, mas aí pela Igreja Católica. As mães saiam nas ruas pra defender a tradicional família mineira. Hoje, as igrejas neopentecostais são as mais ortodoxas. Estão invadindo o Congresso Nacional. E vão além disso, não está só na política. Acho temeroso misturar política com religião. Não tenho nada contra evangélicos, tenho contra pastores que são coniventes com discurso de ódio, que acirram os assassinatos. É um desrespeito completo, é inverter completamente a palavra cristã, é um desserviço à humanidade e à sociedade.
– É evidente que a bancada conservadora não é feita só de religiosos. Há toda uma banca ruralista, que sempre existiu, que está aí para matar o índios.Cada vez se mata mais os índios. É a bancada do BBB, a Bancada do Boi, Bíblia e Bala, essa é a grande bancada conservadora.
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– Eu acho que as propostas de novas eleições não deveriam ser só para presidente, deveria ser geral. Esse presidente é biônico. Eu não votei nele. Quero eleições, não só para presidente, mas para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal. A corrupção e a bandidagem está tomada, com raríssimas exceções que existem no Congresso.
Escola Sem Partido
– Eu acho um absurdo isso. Isso compromete a laicidade do ensino. Acho que o professor tem direito de falar o que ele quiser, ele é o dono da sala de aula. Como pode ser proibido falar de gênero, se nós, a cada momento, expressamos o nosso gênero de várias formas? Há conflitos dentro desta área, há multiplicidades. Quem dera a ideologia de gênero fosse você poder escolher seu gênero e tudo bem. Não é bem assim. É uma forma camuflada de exercer uma repressão, uma ditadura mesmo em relação ao ensino, à educação, aos docentes, à todas as instituições.
Movimento trans no Brasil
– O movimento trans está em crescimento. Não só o trans, mas o LGBT de uma maneira geral. Desde 1995, nós temos as passeatas, que cada vez se proliferam mais no Brasil. Não só as passeatas, mas também seminários, encontros, como este da 3ª Semana da Diversidade de Joinville. Acabei de vir de Criciúma e de Itajaí. O próprio Conselho Regional de Psicologia tem colaborado com essa questão de gênero. Quatro ou cinco universidades do Brasil já tem a cadeira de gênero e sexualidade como disciplina obrigatória.
“As instituições estão viciadas, contaminadas”
– As instituições estão viciadas, contaminadas com uma visão distorcida, baseadas num binarismo sexual, de que só existem homens e mulheres e o resto são doentes, pervertidos, abomináveis. Há exceções, mas continuam chamando as travestis de travecos, fazem questão de ressaltar o nome de registro da travesti. Não se apura nem se divulga estas mortes. A questão é muito mais profunda, estrutural. Vivemos numa sociedade neoliberal, capitalista, extremamente machista, patriarcal, onde não há equidade de gênero nem em relação à mulher, muito menos em relação a outros gêneros que não são reconhecidos.
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– Somos plurais, temos direitos de ser quem nós quisermos ser e da forma que nós quisermos nos vestir e nos apresentar. E sermos respeitados por isso. O que não devemos ser é corruptos, o que não devemos ser é machistas. Porque o machismo mata. O Brasil hoje, é considerado pelas organizações internacionais, como o o país que mais mata LGBT no mundo. Nós temos uma morte diária de um LGBT no Brasil.
– A sociedade tem mania de “generificar” tudo. Os brinquedos funcionam como próteses de gênero. Você não pode dar uma boneca para o menino. O cuidar pertence ao mundo feminino. Ignora-se que ele vai ser pai. Ele não tem necessidade de cuidar de uma criança. Ele é aplaudido quando ele troca a fralda do próprio filho, quando deveria ser uma coisa natural. Eu acho que o machista é quem precisa de um psicólogo, de ajuda. A sociedade aplaude o machista.