Cansaço e medo. Duas sensações que rondam o trabalho de Karol e Leonir. Atualmente, eles são as únicas pessoas que diariamente trabalham no pátio da escola América Dutra Machado, no Bairro Monte Cristo, em Florianópolis. São também alguns dos poucos que mantêm vivo o projeto Revolução dos Baldinhos, que transforma restos de alimentos em compostagem, lixo em matéria-prima para a vida.

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Revolução que mudou o destino das sobras de comida do bairro: ao invés de irem para o lixo, viram adubo, e daí semeiam legumes, verduras, frutas e plantas medicinais que vão parar na mesa de famílias da Chico Mendes, Novo Horizonte, Nossa Senhora da Glória e Grotas, quatro das nove comunidades que compõe o Monte Cristo, na área continental da Capital.

Criada em 2008, por causa da alta concentração de ratos que resultou na morte de uma criança e um idoso por leptospirose no bairro, a Revolução dos Baldinhos, depois de receber prêmios e reconhecimento no Brasil e no exterior, agoniza.

Apesar de envolver questões como tratamento de resíduos, geração de trabalho e renda, agricultura familiar, saúde pública, articulação comunitária e educação ambiental, o descaso do poder público municipal ameaça acabar com a revolução que levou renda, autoestima e cidadania para moradores de uma das áreas mais carentes da cidade.

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— Nosso medo é que o projeto morra, hoje somos só duas pessoas trabalhando diretamente, antes eram oito. Hoje, recolhemos cerca de sete toneladas de resíduos orgânicos por mês, antes recolhíamos 15 — lamenta Ana Karolina da Conceição, a Karol, 34 anos, moradora do bairro e ¿revolucionária¿ desde o nascimento do projeto.

Na raiz do impasse, cujo desenrolar já tem mais de 4 anos, está a cessão de um terreno de 5 mil m², compromisso não cumprido da Prefeitura de Florianópolis em promover a sustentabilidade e ampliação da Revolução dos Baldinhos, para assim pôr em prática um projeto contratado em agosto de 2012, quando a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Santa Catarina (Fapesc) liberou R$ 220 mil para fomentar o desenvolvimento técnico e científico, além da melhoria de infraestrutura da revolução.

Verba garantida

O dinheiro foi para uma conta administrada pelo professor Oscar Rover, do programa de pós-graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do projeto, após avaliação de mérito técnico e científico e legal pela Fapesc.

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Projeto de coleta de lixo na comunidade Chico Mendes, em Florianópolis, luta para conseguir apoio municipal

Parte da verba já foi aplicada em pesquisa, mas o grosso do dinheiro, cerca de R$ 160 mil, têm que ser usados para implantar a nova área de compostagem – com cercamento da área, implantação de infraestrutura, sistema de drenagem e compra de uma máquina carregadeira -, e não podem ser aplicados enquanto não houver a liberação da área por parte do município. A promessa é anterior à liberação do dinheiro, pois o mesmo só foi repassado porque havia a “garantia” da área pelo município.

— É evidente a relevância e importância do projeto, seja para a discussão ambiental, seja para o desenvolvimento urbano e social. Além de ser algo que atende a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que é lei, e mesmo assim não é cumprida em Florianópolis no item que determina que apenas rejeitos não passíveis de reciclagem devem ir para o aterro. É triste ver o projeto, que envolve educação ambiental, compostagem e agricultura familiar, entre outros, estacionar porque uma das partes, o poder público, travou algo tão importante — observa Rover.

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Prazo para implantação da Ecopraça já foi prorrogado duas vezes

Além de a comunidade estar impedida de participar de um projeto de alcance mundial, de ter acesso a um espaço com comprovado potencial para uma área verde e a recursos financeiros da Fapesc para construção de uma Ecopraça com planta recicladora para enorme carga de resíduos orgânicos, além do suporte da UFSC, o impasse na cessão do terreno expõe ainda problemas no controle do mobiliário urbano da cidade.

Projeto catarinense é destaque nacional

O dinheiro disponibilizado pela Fapesc, apesar de ter prazo para aplicação, já foi adiado duas vezes em função da indefinição no terreno.

O novo prazo termina em 30 de novembro deste ano. Se até lá não houver uma definição em relação à área, os recursos disponíveis, cerca de R$ 160 mil, podem ter que ser devolvidos pelo projeto à Fapesc. Quando esse dia chegar, o professor Rover terá duas opções: solicitar nova prorrogação ou encerrar o projeto.

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— Não há ainda uma decisão sobre isso. Vamos ver o desenrolar dos fatos, mas claro que se houver algum tipo de aceno com a possibilidade concreta de liberação da área, pediremos a prorrogação. Mesmo assim, a questão está em aberto — comentou.

A Fapesc segue acompanhando o andamento do imbróglio, e informa que se pedir a prorrogação do contrato, o coordenador do projeto terá que elaborar uma justificativa para tanto. Esse pedido então será analisado pela diretoria técnica e, talvez, pela procuradoria jurídica da Fapesc, para avaliarem se é ou não plausível a justificativa.

Trabalho de formiguinha

Antes do trabalho de formiguinha de Karol e Leonir, moradores e comerciantes da comunidade – mais de 120 famílias já foram beneficiadas com o projeto – separam os restos de comida em baldinhos, para que a dupla ou a Companhia de Melhoramentos da Capital (Comcap) recolham o material e o depositem em 61 contentores azuis espalhados pelas ruas do bairro nos chamados ponto de entrega voluntária (PEVs). Às terças e sextas-feiras, Karol e Leonir recolhem os contentores e os levam até o pátio da escola América Dutra Machado, onde se mantém a Revolução dos Baldinhos.

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Lá ficam as leras, as pilhas de compostagem com o resíduo orgânico que depois vira adubo. Trabalho puxado, o serviço de compostagem toma muito mais tempo do que as quatro horas diárias pelas quais Karol e Leonir ganham um salário mínimo cada um – R$ 880 — como bolsistas do projeto. A separação do lixo, e muitas vezes até o transporte do rejeito, são feitos pelos revolucionários. Até novembro, planeja Karol, serão 1 mil toneladas de resíduos que vão virar compostagem, uma amostra do que pode ser feito pela comunidade

— A gente faz a coleta do resíduo, leva para a escola e mistura com serragem. Ali ela fica por um mês, e os fungos e bactérias geram calor de 60°C, 70° C e decompõem o resíduo orgânico. Depois as leras descansam de seis a sete meses, para então termos o adubo prontinho. Daí o adubo é repassado para os moradores, que plantam verduras, tomates, cebolas, abacaxi e o que for, porque o adubo é de ótima qualidade — explica Karol.

Outra ajuda fundamental é do pessoal da organização não governamental (ONG) Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), que idealizou, junto com a comunidade, da Revolução dos Baldinhos.

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Entusiasta do projeto, o agrônomo e coordenador dos programas urbanos da Cepagro, Marcos José de Abreu, 36 anos, é outro que se preocupa com o futuro do projeto.

— É inadmissível que mesmo após a área ser declarada de utilidade pública, de haver um projeto da UFSC e suporte da Fapesc, a prefeitura não consiga dar andamento à entrega da área, para um trabalho essencial, replicado no país inteiro, inclusive no Minha Casa, Minha Vida — comenta.

Ratos voltam a ser parte da história da Revolução

A Revolução dos Baldinhos nasceu por conta de uma infestação de ratos que provocou duas mortes na Chico Mendes. Na esteira do abandono que o projeto sofreu por parte do poder público municipal, os ratos reapareceram, em bando. E o pior: agora no pátio utilizado como espaço improvisado para compostagem, dentro da escola América Dutra Machado. A reportagem viu pelo menos três deles em plena manhã desta sexta-feira. Um estava morto.

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Karol conta que os ratos apareceram há três meses. Ela aponta o solo saturado e sem drenagem como colaborador do problema.

— Essa área em que estamos não é adequada, mas se não fosse a parceria com a escola, o projeto já teria morrido — revela.

Sobre a estratégia para tentar eliminar o roedor, atraído pelos restos de comida e por um buraco no muro, diz que está fazendo uma “farofa com cimento” para tentar desratizar o local.

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O professor Oscar Rover voltou há um mês da Itália, onde estava fazendo um pós-doutorado. Informado pela reportagem que os ratos tomaram conta do local onde funciona o projeto, ficou inconformado. Disse ser muito preocupante o retorno dos roedores, pois além de prejudicar o projeto, também são um problema de saúde pública.

— Isso precisa ser resolvido logo, e se não tiver jeito, terá que ser feito com veneno, porque não tem como deixar ratos no local.

Problema na coleta

Com uma espécie de carrinho de mão, Leonir da Silva, 31, o Nick, se preparava para ir recolher os resíduos orgânicos no bairro na sexta-feira. Isso porque naquele dia o caminhão da Companhia de Melhoramentos da Capital (Comcap) não tinha aparecido, até o fim da manhã, para fazer a coleta e levar o material até a escola onde está a revolução.

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— Eles costumam vir de manhã, se não vierem nesse horário, depois é que não vem mesmo — disse.

Karol também reclama da Comcap, que segundo ela, em julho, dos oito dias em que deveria fazer a coleta no bairro, “só apareceu em quatro deles”. Quando a Comcap não aparece, os revolucionários saem pelas ruas do bairro com o carrinho de mão para buscar o lixo.

Eles possuem também uma Kombi, mas na sexta-feira ela estava encostada. O motivo? A bateria do veículo foi furtada na noite anterior, algo que, junto com as marcas de tiros de arma de fogo no vidro da escola, demonstram outro dos problemas enfrentados pela comunidade.

— Nada é fácil por aqui — define Karol.

Questionado sobre os relatos, o presidente da Comcap, Marius Bagnati, confirmou que “eventualmente pode ter acontecido do caminhão não passar”. O caminhão, na verdade, é uma camioneta. Sobre o motivo, elencou como justificativas “dificuldades de locomoção ou outros tipos de problema”.

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O resultado da revolução

Ao lado de uma saída de esgoto e muito lixo, com o barulho dos carros logo acima, no asfalto abrasante da BR-282, a Via Expressa, duas hortas comunitárias contrastam com o cenário urbano da única ligação entre Continente e Ilha. É ali que o trabalho de Karol e Leonir, cuja retaguarda é feita pela Cepagro e equipe do professor Rover, da UFSC, tem sua penúltima parada. Nas duas hortas têm de tudo um pouco: alface, cebola, abacaxi, tomate, couve-flor, hibisco, boldo, araçá, entre outros exemplares que servem para produzir saladas, sucos, remédios e chás.

As plantações são a prova do alcance e poder da Revolução dos Baldinhos. Até o lixo que antes era descartado por ali, agora ficou metros distante, mostrando que mesmo quem joga lixo na rua pode ter lapsos de consciência ao ver uma área verde, com horta, plantinhas e frutas.

— O pessoal jogava o lixo todo aqui, mas depois que começamos a plantar, passaram a jogar mais para o lado. E é bom demais ver as plantinhas crescerem e depois servirem de alimento — comemora a aposentada Izolete Dias, 60 anos, que além da horta no canteiro lateral da Via Expressa, mantém outra na varanda de casa, assim como o vizinho e amigo Daniel Modran, 42.

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Impasse sobre o terreno

No Diário Oficial do Município de 11 de fevereiro de 2014, o prefeito Cesar Souza Junior assinou decreto em que declara “de utilidade pública, para fins de desapropriação, área de terra situada no bairro Monte Cristo, Florianópolis/SC, destinada ao desenvolvimento de projetos sociais junto às comunidades do bairro Monte Cristo”.

O terreno fica na Rua José Machado Simas, sem número, e o próprio decreto assinalava que a área deveria servir “para produção de composto orgânico com o objetivo de promover a agricultura urbana, a educação ambiental e a geração de trabalho e renda na região”.

Na época, acreditava-se que o terreno – onde funcionaria a Ecopraça com horta comunitária, espaço para agricultura urbana, pátio de compostagem e área central para receber escolas e dar palestras sobre o assunto – pertencia a uma rede de supermercados.

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Tempos depois, contudo, antes de finalizar a pesquisa em relação à situação do terreno, a prefeitura descobriu que houve transferência de titularidade na área e o espaço não pertencia mais a quem o município achava que pertencia. O imóvel teria sido um dos que foi transferido ilegalmente após fraudes no sistema tributário do Pró-Cidadão, crimes investigados na Operação Trojan, deflagrada pela Polícia Civil em 2015.

Desde terça-feira, a reportagem da Hora entra em contato com as assessorias de comunicação da Procuradoria Jurídica do Município e da Secretaria de Habitação. Na quarta-feira, durante coletiva de imprensa, questionamos o prefeito Cesar Souza Junior sobre o impasse na área. Ele disse que o assunto estava com a procuradoria. Ao procurar este setor, a reportagem foi informada que deveria procurar a Secretaria de Habitação.

Lá, a resposta foi de que o processo referente à área seguia com a procuradoria. Outra ligação para o setor jurídico e nova negativa de que o processo estivesse por lá. Já ao entardecer de sexta-feira, a Secretaria de Habitação voltou a dizer que o processo estava na procuradoria.

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Porém, dessa vez, informou que o imbróglio segue indefinido e, pior, sem data para sair do papel. De acordo com a assessoria da pasta, não é possível saber quem é o dono da área, e quando o processo voltar à Habitação, um novo decreto de desapropriação terá que ser publicado. Além disso, a assessoria informa, não se sabe se será uma desapropriação amigável. Por último, a pasta informou que a cessão do terreno “depende da disponibilidade de recursos”.