Ao mandar soltar os donos da boate Kiss e os músicos da banda Gurizada Fandangueira presos poucos dias após a tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) provocou protestos de familiares das vítimas.

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Saudada por advogados criminalistas, a decisão foi criticada pelo Ministério Público (MP), que teme a fuga dos quatro principais réus do caso.

Os dois proprietários da casa noturna, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, além dos integrantes da banda Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor), ganharam o direito de responder ao processo em liberdade após os desembargadores aceitarem, por unanimidade, o pedido de habeas corpus feito pelo advogado do vocalista, Omar Obregon. Eles deixaram a Penitenciária Estadual de Santa Maria às 21h27min de quarta-feira. Os carros foram escoltados pela Brigada Militar e pela Superintendência dos Serviços Penitenciários, que impediram a aproximação da imprensa.

Em sua argumentação, Obregon sustentou que a prisão cautelar não se justificaria mais para garantir a instrução do processo e a ordem pública. Os argumentos convenceram o desembargador relator do pedido. Para Manoel Martinez Lucas, o encarceramento não seria mais necessário pois “a investigação está encerrada, tendo sido oferecida a denúncia há um bom tempo”, como declarou em seu parecer.

Ao votar favoravelmente pela soltura dos presos – e ser seguido pelo desembargador Julio Cesar Finger e pela juíza convocada Osnilda Pisa -, Lucas se mostrou contrário ao entendimento do magistrado de primeira instância, que acreditava na necessidade de manter os réus segregados até o julgamento. Em seu voto, ele justifica:

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“Ameaça ao normal andamento da instrução criminal, para fins de prisão preventiva, precisa ser concretamente demonstrada. Com efeito, em tese, qualquer réu pode ameaçar testemunhas, alterar a situação de fato, interferir de alguma forma na colheita da prova, assim como, em tese, qualquer réu pode evadir-se, o que, então, obrigaria e prisão preventiva de todos os acusados, por conveniência da instrução criminal e pela segurança da aplicação da lei penal”.

A decisão foi considerada acertada pelo advogado Alexandre Wunderlich, diretor do Departamento de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Conforme ele, a postura do TJ surpreendeu não por ser garantista, mas por ter sido tomada pela 1ª Câmara Criminal considerada uma das mais rigorosa e que, em muitos casos, costuma negar os pedidos de soltura.

– Foi uma decisão técnica que está em consonância com a jurisprudência. Não se deixaram levar por reclames sociais. Foi uma decisão correta – afirmou o professor.

Há clamor social, alerta promotor

Promotor de Justiça em Santa Maria, Maurício Trevisan discordou da posição dos desembargadores e fez um alerta:

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– Se os desembargadores acham que não há mais risco para a ordem pública, que não há clamor social, precisam vir a Santa Maria.

Mesmo que a soltura dos réus seja motivo de comoção entre familiares e amigos das vítimas, a Brigada Militar afirma que a decisão deve ser respeitada e garante que está pronta para trabalhar caso haja alguma reação violenta por parte da população.

– Qualquer tipo de ação impulsiva pode colocar por água abaixo tudo que vem sendo feito. Se essas pessoas são culpadas, a Justiça está aí para julgar – argumenta o major Cleberson Braida Bastianello, comandante do 2º Batalhão de Operações Especiais (BOE) da BM, que acompanhou a situação.

A notícia positiva para os familiares, que criticaram o relaxamento da prisão, foi a alta hospitalar de duas vítimas da boate. Cristina Peiter, 23 anos, e Marcos Belinazzo Tomazetti estavam internados no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre. Estudante de Engenharia Florestal, Cristina teve 22% do corpo queimado e ficou 25 dias na CTI. Marcos chegou a ter alta em 4 de abril, mas voltou a ser internado em 1º maio. Duas vítimas ainda seguem internadas – uma no Hospital de Clínicas e outra no Mãe de Deus, na Capital.

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Surpresa, tristeza e indignação

Na semana em que a maior tragédia do Rio Grande do Sul, que resultou na morte de 242 pessoas, completou quatro meses, a Justiça decidiu libertar os quatro presos. Se pudesse ser resumido em uma palavra, o sentimento das autoridades e dos familiares das vítimas de Santa Maria seria frustração.

Ainda com a voz trêmula causada pelo impacto da notícia que ecoou em uma cidade que, aos poucos, começa a se reerguer, o vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Léo Becker, desabafou:

– Recebemos essa decisão com muita indignação. Isso nem é falta de Justiça, é falta de respeito com as famílias tomadas pelo luto. Não respeitam a dor destas mães, que já estão sofrendo com a perda dos filhos. Ninguém tem dúvida de que eles (réus) são culpados e, mesmo assim, a Justiça solta estes camaradas – dispara Becker.

O promotor Joel de Oliveira Dutra, um dos responsáveis por analisar o inquérito policial e oferecer denúncia contra os réus, compartilhou da surpresa dos familiares das vítimas que foram até Porto Alegre para acompanhar a decisão do TJ. Ele esperava outra posição dos desembargadores.

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– Recebemos a notícia com tristeza e com surpresa. Acreditávamos que o Tribunal de Justiça seria coerente e manteria a decisão, assim como fez das outras vezes. Mas, de modo surpreendente, eles entenderam que não há mais clamor popular para manter a prisão – avaliou Dutra.

O delegado regional Marcelo Arigony, responsável por coordenar a investigação da tragédia, afirmou ter ficado frustrado diante da decisão judicial. Mesmo assim, o policial revelou que, devido aos rumos que o caso tomou, o fato de os presos terem sido soltos não chegou a ser uma surpresa.

– De certa forma, isso (decisão) nos deixa um pouco frustrados. Percebemos que trabalhamos tanto e não estamos vendo os desdobramentos que imaginávamos. Fizemos o apontamento de diversas pessoas, e a maioria não foi denunciada, existem diversos arquivamentos – comenta Arigony.

O delegado Sandro Meinerz, que atuou nas investigações, também lamenta a soltura dos quatro réus no processo:

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– O clamor popular ainda existe, isso eu posso garantir. Para perceber isso, basta ver a existência de movimentos constantes em relação à tragédia. Todo o dia 27, há manifestações, homenagens às vítimas… Imagina como estão se sentindo agora, que todos serão soltos.

*Colaborou Cândida Hansen

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