Editais com trechos idênticos em nove cidades de Santa Catarina colocam em dúvida a relação entre agentes públicos e privados nos processos de municipalização dos serviços de água e saneamento.

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Nos casos identificados pelo Diário Catarinense, especialistas falam que há indícios de licitação dirigida. Nas prefeituras e nas autarquias faltam detalhes sobre como ocorreram essas licitações, pregões ou tomadas de preços.

Nem mesmo as sucessivas tentativas de buscas na internet mostram quais e quantos eram os interessados e habilitados nas concorrências públicas. Mesmo os erros de português se repetem.

– Os trechos idênticos em editais são indícios de licitação dirigida e fraude. Para se ter certeza, é necessário analisar outros aspectos, como se uma única empresa conseguiu participar da licitação ou ainda se outras empresas questionaram as regras da concorrência ou mesmo impugnaram esse edital e receberam respostas absolutamente evasivas – explica o advogado Felipe Boselli, que preside a Comissão de Licitações e Contratos da OAB/SC.

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O Tribunal de Contas do Estado (TCE) decidiu analisar um por um os editais e, constatada alguma irregularidade, pode ser realizada auditoria. Para o presidente Salomão Ribas Júnior, o que preocupa nessas licitações não é a semelhança dos textos, mas o excesso de exigências.

– É necessário ter muita cautela, mas o excesso de exigências técnicas e de qualificação econômico-financeira desses editais me preocupa porque pode ter limitado o número de participantes da licitação e pode ter havido direcionamento, o que ainda tem de ser apurado pelo tribunal – explica o presidente.

Dois empresários que atuam no mercado há pelo menos 10 anos denunciam essas coincidências entre as concorrências e relatam a dificuldade que têm encontrado para vencer as disputas.

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– A gente percebe a dificuldade de entrar e conseguir atender aos requisitos porque esses editais que são praticamente iguais – diz um empresário ao falar das coincidências dos textos.

Os editais localizados pela reportagem foram lançados entre 2008 e 2011 em Içara, Palhoça, Joinville, Schroeder, Campos Novos, Camboriú, Joaçaba, Herval D’Oeste e Luzerna (nessas três últimas, o sistema é integrado).

As administrações municipais negam as irregularidades, descartam a possibilidade de editais dirigidos e garantem desconhecer as semelhanças. As similaridades ultrapassam até mesmo barreiras interestaduais, conforme mostram pontos do edital do serviço de água municipal de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, a 2.353 quilômetros de Florianópolis.

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As concorrências realizadas em SC e em MT foram vencidas pela Raiz Soluções, com sede em São José, na Grande Florianópolis. A empresa presta serviços em 26 cidades catarinenses e em 21 em outros estados.

Um dos sócios da empresa Raiz é Luiz Fernando Oliveira Silva, o Dentinho, preso por corrupção no dia 15 de julho, num esquema de pagamento de propina envolvendo a Águas de Palhoça.

Na mesma operação desencadeada pelo Ministério Público foram presos ainda o agora ex-secretário de Governo de Palhoça Caco Fernandes e o engenheiro Carlos Alberto Fernandes, pai de Caco.

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Os três ganharam a liberdade na quinta-feira passada em habeas corpus. O contrato, renovado em 12 de julho por seis meses sem licitação, implica no faturamento de R$ 900 mil mensais para a empresa.

Para a deputada estadual Angela Albino (PCdoB), a investigação que será realizada pela CPI das Águas, protocolada na terça-feira na Assembleia Legislativa, pode ajudar a entender os processos que envolveram o fenômeno de municipalizações registrado no Estado na última década.

– Há uma similaridade de procedimentos. O município interrompe o contrato com a Casan, mas como o serviço não pode ser interrompido, esse município contrata sem licitação, geralmente é a Raiz. A partir daí, são feitos editais que não são aprovados pelo Tribunal de Contas, mas os contratos continuam sendo renovados sem licitação. Esse modus operandi se repete muito – diz a deputada.

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Presidente da Casan nos dois governos de Luiz Henrique da Silveira (PMDB), Walmor de Luca estava à frente da companhia quando surgiram as primeiras municipalizações – a primeira cidade a desistir do contrato foi Timbó em 2002. Indagado sobre o momento de denúncias no meio, Walmor é taxativo:

– Pela dificuldade que a Casan teve de participar de vários editais, com todos aqueles pré-requisitos, diria que há sim claros indícios de manipulação – afirma.

Procurado pela reportagem, o Ministério Público de Santa Catarina não quis se manifestar sobre o teor das denúncias.

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Contrapontos

RAIZ

Em nota, a Raiz Soluções Inteligentes informou que não prepara editais e nega ter havido direcionamentos nas licitações. A empresa diz ainda que “as prefeituras são as responsáveis pelas redações de seus editais e não as empresas concorrentes. São os municípios que devem ser questionados sobre coincidências”.

IÇARA

A assessoria jurídica da prefeitura de Içara informou que só poderia esclarecer as semelhanças entre os editais depois de ter acesso aos dados. O advogado Gabriel Schonfelder, que assina a nota, explica ainda que “geralmente os editais são copiados, ou seja, uma cópia não quer dizer que existe irregularidade”. A Raiz ainda é contratada para prestar serviços ao Samae de Içara.

JOINVILLE

A atual gestão da Companhia Águas de Joinville informou que não tem conhecimento das qualquer irregularidade envolvendo a licitação vencida pela Raiz. O contrato entre a companhia e a empresa foi encerrado em 2011. A Águas de Joinville esclarece ainda que não foi notificada judicialmente para dar qualquer explicação sobre o caso.

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PALHOÇA

Alex Santore, novo superintendente da Águas de Palhoça, alega que ainda não analisou a licitação realizada em 2010 para a contratação da Raiz. Diz que sua prioridade é garantir o abastecimento e buscar um novo modelo de gestão. A expectativa é de que auditoria instaurada pelo prefeito Camilo Martins em 16 de julho para investigar os contratos possa concluir se houve ou não irregularidades na licitação. Os primeiros resultados devem ser conhecidos na terça-feira.

JOAÇABA, HERVAL D’OESTE E LUZERNA

A diretora do SIMAE, Elizabeth Sartori, afirma que os serviços prestados geralmente são os mesmos pelas autarquias e não vê problema que os itens de referência sejam iguais. Garante que qualquer empresa da área pode atender às exigências e disse que não há nenhum favorecimento à Raiz. Comentou ainda que não foi recebido recurso ou recurso questionando reclamação sobre o edital. Segundo ela, o contrato com a Raiz é de R$ 2,5 mil mensais pela licença do software.

SCHROEDER

A direção da Águas de Schroeder informou que não tem noção de como foi feito o edital, pois é de outra gestão, que atualmente a municipalização traz resultados positivos e que os recursos obtidos são todos destinados a investimentos.

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CAMPOS NOVOS

O diretor da Samae, Joel Fagundes, afirmou que não poderia se manifestar porque é a comissão de licitação que faz os editais. Segundo ele, são feitas consultas a outras Samaes a respeito, nunca houve problema e nenhum favorecimento à qualquer empresa.

CAMBORIÚ

O secretário municipal de Saneamento Básico, Janir Francisco Miranda, cuja secretaria cuida do serviço municipal de águas, afirmou que não poderia se manifestar sobre editais porque apenas requisita esse tipo de documento à secretaria da administração. Disse que o contrato com a Raiz é de baixo valor, apenas de licença para uso do software e que nunca houve nenhum tipo de favorecimento.