Dentro de uma ótica apaixonada nessa anunciação da pluralidade cultural do Festival Audiovisual do Mercosul (FAM) é fácil compreender a inclusão dos curtas-metragens Las musas de Pogue e Echa Pa’Lante, que, ainda que não sejam exemplos técnicos, desbravam realidades interessantes e mensagens respeitáveis. Entretanto, é quase surpreendente que a curadoria dessa edição tenha deixado passar um documentário quase desrespeitoso como Buracão, que se camufla na arte experimental para capitalizar em favor de um dos documentados, que chega a fornecer e-mail, Facebook e telefone para vender exemplares de seus livros, o qual estaria estimulando uma cultura esquecida.
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A tentativa de Teka Simon e Camila Oliveira em carregar seu filme com passagens experimentais, do contato das crianças com um outro universo, através da lente, das aventuras daquele povo, é bem cristalina. A execução, porém, é condenável. É verdade que a ousadia das diretoras possa ter sido aclamada pelo público do festival, exatamente por fugir do convencional. Porém, certas alternativas podem doer no amante de um cinema de qualidade técnica. Não se enquadra numa questão de criticar a ousadia ou a personalidade, mas a forma como se apresenta. O fiapo de história que nos é evidenciado apenas no fim do curta, culminando na capitalização do livro, soa no mínimo cínica e paradoxal, já que – para aprofundarmos numa cultura que necessita de disseminação – precisaríamos desembolsar alguns reais.
Infelizmente, eu perdi o filme de Ronaldo dos Anjos, O Demônio e as Margaridas, cujo cinismo era proposital: um tatuador recebe a visita do Demônio. Contrapondo-se ao filme de Santa Catarina, o curta-metragem carioca D.E.U.S (Durval Eleonor Ubaldo Silva) entra na discussão de onde estaria o criador do universo todo esse tempo e brinca com a percepção da juventude sobre Deus. É espirituoso, ainda que superficial nos reais problemas sociais, os quais nunca passam pela cabeça do diretor Rafael Costa. Já Lux, o curta peruano de Alvaro Luque, é uma benção. Filmado todo em contraluz, o cineasta nos mantém distante todo o tempo dos visitantes, quem apenas podemos imaginar e nunca vemos com clareza. A harmonia que isso reproduz no clímax é deslumbrante.
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Igualmente belo é a passagem pelas florestas de Correia Pinto e Otacílio Costa que intercedem o título Deserto Verde, o bom filme de Juliana Kroeger. É bastante óbvio a indecisão da diretora na montagem com as inúmeras imagens disponíveis para a execução do trabalho e a quantidade de informação, algo que pontualmente prejudica a narrativa em sua linearidade, mas nunca se perde a empatia da situação passada pelos moradores. É notável, além disso, a habilidade de Kroeger em criar uma coesão entre os contrapontos empresarial e humano, bem como a rotina das famílias que vivem nos locais mais prejudicados pela poluição da indústria papeleira. Assim, o final se torna brilhante, ao esboçar o consumo interminável e levantar a questão: a que ponto?
Por fim, Quem não tem cão, de Cintia Domit Bittar, faz com que a diretora volte às suas raízes – na abordagem similar ao ótimo Qual queijo você quer? Explorando bastante os enquadramentos fechados, a catarinense é elegante ao expor o catalisador das aflições e brigas nos cômodos do pequeno apartamento de uma família pobre. Não é brilhante tal qual O Segredo da Família Urso ou O Tempo que Leva, mas é outro esforço notável da diretora em transmitir, na simplicidade, algo maduro.