Com destreza, Maria Ana Raimundo, uma josefense de 76 anos, corta pequenos pedaços de tecido e com a tesoura, vai criando roupas para bonecas. Com outro pedaço de pano, faz o corpo do artesanato; com nós no tecido, faz a cabeça e os pés. Tudo muito meticuloso. Tudo muito gracioso. As pequenas bonecas de pano são chamadas Abayomi. Mães escravas faziam as bonequinhas com suas próprias roupas para os filhos, como forma de amuleto. Seu significado é simbólico e poderoso para Maria: Abayomi é aquele que traz felicidade. Ou aquela, como é o caso dessa mulher.
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Maria, na verdade, tem outro nome conhecido em São José. Como gosta de brincar, seu nome artístico é Regina, como sua mãe de criação era chamada. Quem quiser também pode a chamar de Regininha. Não tem tempo ruim.
Dona Regina é voluntária do Hospital Regional; voluntária e membro da Igreja de Nosso Senhor de Bomfim de São José; brigadista e voluntária dos bombeiros (com formação e diploma); é membro do Conselho de Cultura da cidade; costura e faz fuxico; vai de ônibus todos os dias até o Sesc de Palhoça para fazer aula de vôlei e dança circular; faz capoeira; hidroginástica no Cati (Centro de Atenção à Terceira Idade); voltou a estudar e a andar de bike depois dos 70 anos; está aprendendo a tocar violão e flauta doce. Também fez curso para ser oleira. E nas horas vagas, ainda se veste de Maria Chiquinha e participa de apresentações teatrais.
Ufa. Uma pausa para respirar.
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Ela ainda é mãe de quatro filhos, vó de seis netos e de um bisneto. Foi casada por 51 anos e há dois anos é viúva. Mas, como desejo de seu marido, ela mantém a vivacidade. Seu otimismo em relação à vida a fez ser convidada, no ano passado, a carregar a tocha olímpica em São José. A roupa especial do dia é guardada com carinho até hoje.
Sem esquecer é claro, das Abayomi. Hoje, uma das principais atividades dessa senhorinha que não para é a confecção destas pequenas bonecas de pano, que também viram chaveiros. Ela ganha os tecidos através de doações e quando ocorre a Feira da Freguesia, no Centro Histórico, dedica seu tempo, num domingo, para ensinar num curso gratuito a como fazer as bonequinhas.
— Eu fazia teatro anos atrás e íamos para lá e para cá para nos apresentarmos. Fomos numa feira em Palhoça, há uns cinco anos, e vi estas bonecas. Eu fiquei muito tocada pelo significado delas. E quis aprender a fazer — contou dona Regina.
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Voluntária no Hospital Regional há pelo menos sete anos, ela passou a levar as Abayomi de presente aos pacientes que visitava na unidade de saúde. E indicava a eles guardarem o mimo, para dar sorte.
— Não é preciso muito para fazer outra pessoa feliz. Às vezes, nem precisa falar nada. Um abraço, um aperto de mão, o amuleto de presente. Tem pessoas que pedem até mais de uma bonequinha (risos). De vez em quando falo uma coisa bonita, uma palavra de Deus. Mas tem dias que até danço com os pacientes. Já levei o violão. Já escutei gente falando que tinha até esquecido que estava doente. É uma benção ser voluntária. Eles ficam felizes, e eu também — detalha a senhorinha.
Além de ir com frequência ao Hospital Regional, dona Regina leva o amuleto para outros 15 idosos, a maioria com mais de 90 anos, que não conseguem mais sair de casa. Ela visita os amigos diretamente em suas casas, a cada 15 dias, para levar uma palavra fraterna.
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— Tem dias que eu só chego de noite em casa. Subo e desço o morro da minha casa umas cinco vezes por dia. Mas eu adoro isso. Adoro fazer várias coisas ao mesmo tempo — revelou.
Dona Regina vai além e dá dicas de como manter a vitalidade, felicidade e o amor pelas pessoas. Confira o que ela fala no vídeo:
A vitalidade de dona Regina, de São José
Infância aos 65 anos
Toda a vida ativa de dona Regina na ¿terceira idade¿ tem uma razão. Ela mesma afirma que está vivendo a sua infância agora, depois dos 65 anos. Antes disso, como revela — “sem mágoas”, enfatiza — havia muito sofrimento.
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Nascida na região na época chamada de Picadas, em São José, até os cinco anos, vivia com sua mãe e um com irmão um ano mais novo. Seu pai já havia falecido. Era ela que cuidava do irmão enquanto sua mãe ficava o dia inteiro fora para trabalhar. E a mãe bem que tentava: suava a camisa, mas tinha dias que os três iam para cama sem comer nada durante o dia inteiro.
— Então chegou um casal mais velho, que não podia ter filhos, e perguntou para a minha mãe se podia levar um dos filhos, já que ela não tinha condições. Então ela falou para levar a menina, porque gostava mais do menino — conta dona Regina. O irmão mais novo morreu ainda criança.
A então menina de cinco anos passou a viver num sítio, na mesma região em São José. E a partir dali, conta dona Regina, ela não teve mais infância. Se antes já era duro, com a família de sangue, com a família de criação foi ainda mais pesado. Desde os sete trabalhava dentro de casa ou na roça. Acordava 3h da madrugada para colher mandioca e fazer farinha no engenho — muito comuns naquela época em São José.
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— Ficava até de noite lá trabalhando. Não tive infância. Nunca ganhei presente no Natal e coisas que as outras crianças ganhavam. No meu aniversário de 15 anos me deram uma enxada nova — revela a aposentada.
A única vez que ganhou um presente, conta, foi de uma vizinha. A mulher tinha uma filha epilética que gostava muito de Regininha. Um dia, então, ela quis agradecer a menina pela amizade com a filha e lhe prometeu comprar uma boneca.
— Ela falou que ia me levar para a cidade para comprar. Na época, a cidade era Florianópolis. Fomos até lá, andamos em estrada de barro. Sabíamos que logo depois da ponte já tinha uma loja de bonecas. E quando chegamos lá, a boneca estava muito cara. O vendedor então disse que tinha uma quebrada, sem a perna. E para essa, o dinheiro era suficiente. Meu primeiro presente então foi uma boneca, dessas carequinhas, sem uma das pernas.
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Como não tinha irmãos, dona Regina acabava tendo proximidade com as primas, por parte de sua família de criação. Mas lembra-se que era uma relação bem complicada, com pouco ou quase nenhum afeto.
— Como eu não ganhava comida boa em casa, elas pegavam as cascas de pão e colocavam dentro de um formigueiro para eu ter de pegar ali para poder comer. E eu não podia contar para ninguém, se não, não ganhava mais.
Briga para casar
Dona Regina casou aos 23 anos, mas com votos contrários de sua família de criação. O futuro marido, com quem viveu depois por mais de 50 anos, chegou a ser ameaçado de morte pelo pai dela.
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— Eu era branca. Mas fui tratada como escrava até os 20 e poucos anos. Quando quis casar com meu marido, meus pais me deram uma surra de açoitada, que nem cavalo. Tudo isso porque eles não queriam que eu saísse de casa e deixasse de fazer as coisas para eles — disse.
Mesmo assim, dona Regina casou e teve um casamento muito feliz com seu Raimundo. Mudou-se mais tarde para a região do Centro Histórico e trabalhou por mais de 40 anos da escolinha São José, que existia antigamente na região central. Trabalhava como serviços gerais.
Mas como a vida é um ciclo de ironias, foi dona Regina, mesmo depois de ter sido tão violentada, que cuidou dos pais de criação quando eles estavam velhinhos. Aliás, ela e o marido, aquele mesmo que havia sido ameaçado de morte. Assim como cuidou de sua sogra e sogro, e como também de sua mãe de sangue.
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— Depois que ela me deu, ela casou de novo e teve filho. Mas quem cuidou dela no fim da vida fui eu, na minha casa. E nunca, nunca, demonstrei mágoa alguma. Não quero levar nada de ruim para mim — contou dona Regina.
A liberdade, como descreve, veio então somente aos 65 anos. O marido, não gostava de fazer tantas atividades como ela. Mas ele a incentivava a fazer, assim como seus filhos e toda sua família.
— O que a gente leva da vida é só a felicidade. E mesmo depois de tanto sofrimento quando criança, eu não guardo coisa ruim comigo. Faça alguma coisa, saía de casa, ajude alguma pessoa. Eu sou muito, muito feliz.
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