Teve uma vez que um homem desafiou o ritual de não trabalhar na Sexta-feira Santa e decidiu cortar lenha. Ficou pendurado num cipó por horas. Outra vez, uma senhora viu a procissão das almas, na noite que antecede Finados, e ganhou de “presente” um osso humano. Não era um bom sinal. Já teve muita criança embruxada, fantasma dentro de engenho e na Casa de Câmara e Cadeia — ou tem ainda, vai saber.

Continua depois da publicidade

É assim, misturando fé com crendice popular, história oficial com lenda, que a cultura de São José, cidade que completa 267 neste dia 19 de março, fica ainda mais rica. E são essas histórias que contamos aqui.

Acredita-se que em 1750, 182 casais vindos do Arquipélago dos Açores, em Portugal, iniciaram a primeira povoação das terras e das praias que ganharam nome de santo: São José da Terra Firme. E eles trouxeram uma bagagem cultural rica em crendices, receitas e lendas. Associadas aos contos indígenas, surgiram histórias das mais belas até as mais assustadoras, que foram transmitidas de pais para filhos, e por aí se alastraram, tomando as ruas, rodas de conversas, mesas de bar e mais tarde, páginas de livros.

Se na Ilha de Santa Catarina brotavam histórias de bruxas, lobisomens e boitatá, na terra firme de São José também se perpetuaram lendas de gente muito religiosa que via assombração.

Continua depois da publicidade

O historiador e mestre Vilson Francisco de Farias, hoje morador de São José, fundou e coordenou o Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que tinha como objetivo difundir a cultura açoriana no Estado, frente à força cultural alemã, que até então, liderava as heranças históricas em Santa Catarina.

Ele pesquisou e ouviu relatos de pessoas desde Garuva, no Norte, a Sombrio, no Sul. Mas focou suas pesquisas históricas em São José, lançou livros e afirma: cidade com referência cultural mais forte, não há. Para suas pesquisas, ele escutou moradores e professores de comunidades da cidade, que lhe contaram um pouco mais sobre os costumes e crenças dos antigos moradores. Muitas delas, inclusive, foram vivida por ele mesmo.

— Temos dois lados importantes em termos de imaginário e memória de São José. A parte da religiosidade, que é a essência da cultura do Litoral de Santa Catarina, e o viés dos mitos — explicou.

Continua depois da publicidade

Veja o vídeo com a contação de histórias de Vilson:

Histórias de São José

(Foto: Betina Humeres / Agência RBS)

A religião católica, como lembra o historiador, é o principal laço das antigas manifestações culturais do Litoral de Santa Catarina. O período de quaresma, neste contexto, ganhava extrema importância na vida dos imigrantes açorianos. Um dos rituais, muito comum, era não comer carne “verde”, ou fresca, como explica Vilson.

Outro ritual que chama a atenção é o de não fazer absolutamente nada na Sexta-Feira Santa. Muita gente dizia que trabalhar neste dia poderia dar azar. Não poderia varrer, plantar, limpar.

— Se cavasse a terra, por exemplo, sairia sangue — narra o historiador.

O próprio pai de Vilson relatou a ele um causo que ocorreu em terras josefenses há muito, muito tempo atrás.

Continua depois da publicidade

— Ele falou de um cara que não acreditava nisso de não poder fazer nada. E esse homem, na Sexta-Feira Santa, foi para o mato retirar lenha. A madeira que ele queria estava na beira de um peral. E ele acabou cortando o cipó que dava sustentação para ele. O homem ficou pendurado no vazio, desesperado e pedindo a Deus para que ajudasse. Ele conseguiu se resolver, mas daquela data em diante, nunca mais fez nada na Sexta-Feira Santa. Foi interpretado como castigo — contou Vilson.

Procissão das Almas

(Foto: Betina Humeres / Agência RBS)

Esta é uma história que ganhou o imaginário popular do Brasil inteiro. Há relatos da chamada Procissão das Almas em Minas Gerais, no Nordeste, no Norte. E São José também tem a sua versão.

— Há histórias muito parecidas, mas cada uma ganha referências conforme suas regiões — lembrou Vilson.

Continua depois da publicidade

Sabe-se que a temida Procissão das Almas ocorria à meia-noite, da madrugada que virava para o Dia de Finados. Dizem que ela percorria as ruas ao redor do cemitério da região onde hoje fica o Centro Histórico de São José. Como em quase todas as lendas regionais, ver a procissão não era lá uma coisa boa. Até porque ninguém conseguia confirmar quem ao certo eram aquelas pessoas que participavam do cortejo.

Em histórias relatadas ao redor do país, os participantes usavam túnicas brancas. O problema era se alguma delas resolvesse falar com você.

— A pessoa que visse a procissão e recebesse um presente, tinha que abrir e ver o que era. Conta-se que em São José uma senhora que costumava ficar em sua janela viu a procissão e recebeu um presente. No outro dia abriu e era um pedaço de osso de uma canela humana. Quando se recebe este “presente”, se morria até o próximo ano e se participava então da procissão das almas. Quem ouviu, jura que é autêntico — afirma Vilson.

Continua depois da publicidade

Criança embruxada

(Foto: Betina Humeres / Agência RBS)

O Litoral catarinense está recheado de histórias de bruxas. Elas cavalgavam nos cavalos durante a noite e faziam nós em seus rabos, ou surrupiavam barcos de pescadores durante a madrugada para fazer suas maldades. O misticismo era o mesmo: mulheres chamadas de feias, geralmente as que viviam criticando as pessoas, as invejosas.

Mas a magia que mais pegava era contra crianças. Quando um bebê ou criança pequena ficava doente e ninguém sabia o que era, a comunidade já tratava de dizer que era coisa de bruxa. As benzedeiras, assim, tinham papel fundamental para quebrar o fado – nome que se dá ao encanto bruxólico.

A médium espírita Laurete Nobre da Silva, muito conhecida e chamada — erroneamente, segundo ela — de benzedeira, contou, timidamente, que antigamente algumas famílias a procuravam para tratar crianças “embruxadas” em São José. Mas tudo não passava de um problema de saúde, que era resolvido com suas receitas e também com seu dom de curar.

Continua depois da publicidade

— A gente sabe que muitas crianças ficavam doentes por causa da higiene e isso era atribuído à bruxaria — destacou o historiador.

Na época, existia o chamado “mal de sete dias” nos recém-nascidos. Acreditava-se que alguma bruxa, travestida de comadre ou amiga da família que teria visitado a criança, teria embruxado o bebê. Para descobrir quem era a coisa-ruim, as famílias josefenses viravam uma vassoura de cabeça para baixo atrás da porta.

— A mulher que começasse a se sentir muito desconfortável, quase desesperada com a vassoura de cabeça para baixo, e tivesse que sair correndo da casa, era a bruxa — explicou o historiador.

Continua depois da publicidade

Franklin Cascaes relata em seus contos que quando bruxas eram descobertas na região, elas apanhavam de rabo de tatu para aprender a não fazerem mais maldades com crianças.

E quando se quebrava o fado, as famílias também costumavam pagar promessas depois que as crianças melhoravam de saúde. Uma das mais populares era reunir ao redor de uma mesa cheia de comidinha gostosa sete inocentes, sete crianças puras e sem maldade.

— Eram sete crianças, como menos de sete anos ao redor de uma mesa de doces. Eu participei inclusive — relata Vilson.

Continua depois da publicidade

O lobisomem de Potecas

Uma das histórias mais comentadas de lobisomem por antigos de São José, e que foi relatada no livro “São José: 250 anos”, de Vilson Farias, é de um causo que foi ouvido pelas bandas de Potecas:

“Um rapaz foi atacado pelo lobisomem. O rapaz cortou o lobisomem com um canivete, quebrando o encanto. O homem (lobisomem) foi descoberto e fingiu felicidade por se livrar do feitiço. Agradeceu o rapaz e disse que o esperasse, que iria buscar um agrado para compensá-lo. O rapaz desconfiou, tirou a capa e o chapéu que estava usando, colocando-os num pau fincado no meio da estrada. O ex-lobisomem voltou com uma espingarda e atirou na capa, imaginando ser o rapaz (que observava escondido na mata). O rapaz fugiu e contou aos amigos quem era o lobisomem, que acabou indo embora”.

Marilene Silva Domingues, 73 anos, filha da “benzedeira” Laurete, também ouviu quando nova histórias do lobo amaldiçoado. Ela e a mãe nunca viram o bicho, mas garantem que hoje não existe mais estas coisas.

Continua depois da publicidade

— Um pescador da região disse que quando ia pescar, tinha um cachorrão perto da Ponte Debaixo. Ele disse que ia pegar e dar uma surra no lobisomem, para ver quem era. Foi lá e deu uma paulada no bicho. No outro dia ele, um homem estava machucado e descobriram quem era o lobisomem. Mas não posso falar quem era — despistou a aposentada.

O fantasma do engenho

São José, assim como outras cidades de Santa Catarina, possuía uma quantidade grande de engenhos de farinha, espalhados principalmente no interior da cidade, em bairros como Potecas, Forquilhas, Serraria.

Atualmente, além do engenho que está exposto no Museu Histórico de São José, os historiadores não têm conhecimento de alguma outra estrutura dessas que ainda exista na cidade. De qualquer forma, um dos engenhos localizados no bairro Forquilhinhas foi palco de uma outra história de assombração ouvida por Vilson e relatada em seu livro:

Continua depois da publicidade

“Foi visto um vulto saindo do engenho com uma vela acesa na mão, o mesmo vulto largou-a no chão e sumiu”.

O historiador frisa que apesar de história de fantasma no engenho, o espaço era conhecido por ter muitas histórias felizes.

— Homens e mulheres trabalhavam no espaço durante o período da farinhada. Através das cantorias do engenho, surgiram muitos namoricos. Muitos se conheceram ali e até casaram-se — lembrou o historiador.

Continua depois da publicidade

Casa de Câmara e Cadeia

(Foto: Betina Humeres / Agência RBS)

Outro lugar cheio de mistério é a Casa de Câmara e Cadeia, que hoje está revitalizada e abriga a Casa da Cultura de São José. No período colonial, era nessa estrutura onde eram tomadas as decisões, e no seu subterrâneo, ficavam as celas. A Casa fica no Centro Histórico e foi construída em 1859.

E num lugar com mais de 150 anos, é claro, há muita história para se contar. Quem relatou foi o historiador Osni Machado, mais conhecido na cidade como Seu Nini. Da Praça Hercílio Luz, ele aponta a janelinha onde era a cela dos presos e lembra de um fato descrito no livro Sinfonia Poética e Prosa, da Academia São José de Letras.

“O caso de mais notoriedade foi o que se deu em 10 de agosto de 1921. Estava cumprindo pena em uma das celas, a primeira ao lado esquerdo, o famoso condenado Domingos Brocato. Fora protagonista, em Lages, no ano de 1902, de um crime, talvez o mais famoso de Santa Catarina. (…) Brocato assassinou Ernesto Canozzi e Olinto Pinto Centeno, duas pessoas muito conhecidas e queridas na sociedade lageana. Esse acontecimento ficou conhecido como A Tragédia do Caveiras. Após ser preso, veio cumprir pena na penitenciária estadual em Florianópolis. Posteriormente foi transferido para a cadeia de São José, onde desentendeu-se com outro prisioneiro, conhecido por João Ruivo, sendo que esse o matou a pauladas enquanto dormia”, diz o trecho do livro de seu Nini.

Continua depois da publicidade

O historiador complementa e diz que Ruivo teria arrancado um dos pés da cama para matar Brocato. A história é curiosa até hoje e dá calafrios em muita gente. Tem quem garante que o a alma da vítima continua ali.

Fonte de histórias

Livros que ajudam a descobrir São José

– São José: 250 anos (Vilson Farias)

– Sinfonia Poética e Prosa (Academia de Letras de São José)

– São José da Terra Firme (Gilberto Gerlach)

Você sabia?

A vinda dos primeiros imigrantes a São José ocorreu em 26 de outubro de 1750, data tida como sua fundação. Em 1º de março de 1833, a freguesia passou a vila, e em 3 de maio de 1856, foi elevada à cidade. A data de aniversário da cidade, no entanto, é comemorada neste 19 de março porque é oficialmente o dia do santo que dá nome ao município.

Leia todas as notícias sobre São José

Veja as últimas notícias sobre a Grande Florianópolis