Pobre, quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos para sobreviver. Assim morreu o escritor austríaco Robert Musil (não tão famoso quanto Kafka, Joyce e Proust, mas igualmente importante e um dos grandes do século passado) no dia 15 de abril de 1942. E sempre quando as eleições se aproximam, gosto de rever sua obra. As quase mil páginas de O Homem Sem Qualidades, seu livro mais famoso, mostram como a hipocrisia foi e é o combustível da sociedade. Toda vez que vejo um possível candidato a prefeito sorridente na TV, ou um candidato a candidato bancando o salvador da pátria, olho para O Homem Sem Qualidades na minha estante e dou uma piscadinha.
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O livro encerra o pensamento e a vida de Musil (que trabalhou em sua obra-prima durante cerca de quinze anos, de 1927 até o dia de sua morte) e traduz a ânsia humana de poder. Na época, a obra foi proibida na Alemanha e na Áustria (onde a história transcorre disfarçada com o nome de Kakânia). Misto de ensaio e romance, com fortes doses de sátira, o livro nos apresenta o enigmático Ulrich, que busca ascender socialmente e faz três grandes tentativas de se tornar um homem importante: como oficial, engenheiro e matemático. O narrador frio e distante, que parece condenar as superficialidades mundanas se esconde atrás de um intelectualismo quase pedante contra “a imensa raça das cabeças medíocres e estúpidas”.
Ulrich se revolta com tantas hipocrisias da lógica do mundo, mas nem sempre estas revoltas tomam forma. Como ele mesmo diz: “por vezes começava a sonhar em vez de tomar decisões”. Mas, no fundo desta aparente passividade, uma ironia mordaz recupera uma potência de resistência.” A humanidade produz bíblias e armas, tuberculose e tuberculina. É uma democracia com reis e aristocratas; constrói igrejas, mas constrói universidades que as combatem; transforma mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares; naturalmente também coloca nas mãos de bandidos, mangueiras de borracha recheadas de chumbo, para atormentarem outras pessoas, e depois prepara cobertores macios para as vítimas de maus-tratos”.
Musil aponta de forma contundente a assepsia da técnica como novo paradigma da vida moderna (o problema do empobrecimento da experiência levantado por Walter Benjamin) e deixa uma grande interrogação em sua obra máxima: “E a verdade que me ensinam será a minha verdade?”. Em tempos de eleições, Musil continua sendo um grande alívio, um antídoto para a hipocrisia contagiosa que se instalou no país.
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De editor de livros a gestor de programação literária
Diário de um leitor

Fernanflor, de Sidney Rocha: o escritor cearense vem construindo (a margem de qualquer badalação) uma das obras mais instigantes da literatura brasileira contemporânea. A história do pintor Jeroni Fernanflor é calcada sobretudo na honestidade artística, que coloca a arte e a estética acima de tudo. É um livro que extrai sua força das lacunas, dos subentendidos e alusões, mas sobretudo da linguagem: a força-motriz deste breve e profundo romance onde “pinturas são galáxias reduzidas à poeira”.
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Só, com peixes, de Adriane Garcia: os cinquenta e cinco poemas do livro emulam as contradições humanas no universo aquático. “Um peixe é um pássaro/Sem asas/Mas um pássaro é um peixe/Sem águas…” A voz sensível e singular da escritora mineira suspende o olhar comum, e traz o frescor e a angústia de um universo feito de água: muitas geografias de uma poesia que sabe dialogar com a tradição e a contemporaneidade.