Aproveitei os dias de Carnaval para reler alguns livros e entrei para o bloco “Leitura Incessante”, pulando de história em história com os dois dedinhos para cima. Então, nesta Quarta-feira de Cinzas, a minha ressaca é de palavras, principalmente as do escritor italiano Alessandro Baricco.

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O que importa, antes de tudo, de qualquer coisa, na literatura, é ter uma boa história e ter a quem contá-la. É neste preceito, alçado à boca de um dos seus personagens, em Novecentos, que Baricco constrói seu universo ficcional. De alguma maneira, ele quer resgatar a cena ancestral da leitura, aquele momento em que todos sentavam ao redor da fogueira para ouvir histórias e se encantarem. E faz o que Valery, depois retomado por Benjamim, apregoava: instaurar o olhar do artesão na narrativa.

Se os blocos voltaram com força em todo o país para resgatar a verdadeira essência do Carnaval (o livre divertimento pelas ruas e praças), um autor como Baricco parece também resgatar um espaço: a do escritor que valoriza sempre uma boa e inventiva história, levantando a bandeira secular e vitoriosa dos blocos carnavalescos “Somos Todos Cervantes” e “Bocaccio que te Quero Mais”.

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Baricco é aquilo que se entende por “escritor da imagem”. Precisamente porque, na sua expressão absolutamente única, originalíssima, escreve e descreve as próprias raízes da imagem, e cada imagem responde a uma palavra, única, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e fértil confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, e entendemos como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. Cada palavra no seu devido lugar. As imagens de Baricco evocam necessariamente a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que vivemos, que nos envolvem de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias.

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Para quem não conhece a obra de Baricco, sugiro Seda para começar: pois é nesse livro que sua precisão narrativa é mais hipnótica, uma imensa viagem ao redor do coração humano. Sua formação filosófica e musical empresta às suas histórias um elemento ímpar na ficção contemporânea: suas histórias são cheias de camadas e se moldam ao leitor de acordo com sua capacidade de absorção. Recursos musicais como tempo, silêncio e duração influenciam diretamente todos os seus livros, cheios de histórias desdobradas, de histórias carregadas de outras histórias.

Diário de um leitor

Ângulo de Guinada, de Ben Lerner: uma poesia que olha para o hoje, mas parece ter vindo de algum lugar do futuro, e enquadra sem complacência as armadilhas linguísticas, geográficas e financeiras criadas a partir dos anos 2000. É o sujeito contemporâneo numa guerra (perdida) contra instituições que já esqueceram (economia de mercado, militarismo, religiões) seus próprios princípios, mas principalmente um embate contra o utilitarismo, que parece ter contaminado tudo, inclusive a arte. Uma poesia que se traveste de prosa e vice-versa para mostrar o que é viver nesses tempos sombrios, onde a informação é uma arma de desinformação. Segue um poema do livro, na tradução de Ellen Maria Martins de Vasconcellos:

“LER É IMPORTANTE porque te obriga a baixar a vista, um gesto de contrição. Quando a página passa ao plano vertical, se transforma em publicidade, decreto e/ou a imagem de um menino perdido ou de um animal. Costuma-se dizer que os textos em vertical se dirigem ao público, quando, em rigor, ao não ensinarmos a humildade, que é requisito da vida em comum, convocam o narcisismo das massas. Quando você olha vitrines, quando você quebra em cacos o vidro de uma loja, você vê sua própria imagem refletida.”

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Atenção: este é um lançamento exclusivo da E-Galáxia em e-book, mas é fácil de comprar: qualquer pessoa com acesso à internet consegue encontrar e baixar. Eu li no celular, em doses homeopáticas, e foi uma experiência sensacional.