Sempre achei estranho São Paulo ter um evento que exibe filmes do mundo todo e não ter algo parecido com peças teatrais. Pois a cidade viveu na última semana sua primeira Mostra Internacional de Teatro, a MITsp.

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Sem saber direito se conseguiria ou não participar, sem credenciais de acesso, vi menos peças do que gostaria. As que assisti foram graças à boa vontade de amigos, alguns que esperaram em longas filas para pegar os dois ingressos disponíveis por pessoa.

Enquanto escrevo, espero para ver a peça Cineastas, do argentino Mariano Pensotti. Falta uma hora ainda para o início e a fila dá voltas no Auditório Ibirapuera. No café, algumas pessoas falam em espanhol, outras em inglês, talvez atores de outras companhias.

Há mais teatro latino-americano na programação. É claro que a proximidade geográfica ajuda, mas há também uma potência nos grupos de nossos países hermanos.

Concentrado apenas nos finais de semana, consegui ver a peça de abertura, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, do italiano Romeo Castellucci, muito aguardado por aqui. Seu trabalho cênico anterior, baseado na Divina Comédia, foi considerado o melhor da década de 2000-11 pelo Jornal Le Monde. O diretor é estudado no meio acadêmico justamente por criar formas antidramáticas que mesclam artes visuais e plásticas. Sobre o conceito… é uma peça performática e provocativa, causou polêmica na Itália, com manifestações de grupos ligados à Igreja. Na primeira imagem apresentada, um filho passa o tempo todo limpando o pai, idoso e com incontinência fecal. Já a segunda e a terceira parte apresentam a destruição da imagem do rosto de Cristo, numa reprodução do retrato feito pelo pintor italiano Antonello da Messina (1430-1479). Saí do teatro borbulhando associações entre o nome da peça e a cena escatológica entre pai e filho, mas também sobre os rumos do teatro contemporâneo e a arte performance.

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Fato curioso: do outro lado da cidade, a estreia do musical Jesus Cristo Super Star, versão brasileira da peça da Broadway, causava furor de movimentos cristãos que protestavam na porta do teatro.

No último final de semana, consegui pegar uma sessão da peça Escola, do chileno Guillermo Calderón, outro nome conhecido da cena teatral latina. Militantes de esquerda recebem treinamento de guerrilha para enfrentar a ditadura de Augusto Pinochet, nos anos 80. Jovens mascarados, cuja imagem é hoje associada aos black blocs, deixaram a peça mais atual. No entanto, o que era cômico na encenação por pouco não ofuscou a proposta. Se não tivesse certeza do contrário, pensaria até que a ideia era ridicularizar a guerrilha.

Surpresa foi conseguir ver Ubu e a Comissão da Verdade, incursão no teatro do artista sul-africano William Kentridge, que expôs na Pinacoteca em 2013. Teatro com atores, bonecos e geringonças criadas por ele, somadas às animações em vídeo pelas quais é mais conhecido. Já escrevi aqui sobre Kentridge e talvez por ter ido recentemente à África, foi a peça que assisti com maior entusiasmo. O personagem, inspirado no texto Ubu Rei, do francês Alfred Jarry, é um policial branco investigado pela Comissão da Verdade instaurada no fim do Apartheid. Além da importância política do tema, a interação dos atores com as animações em vídeo faziam a gente viajar na história contada e também sobre a maneira de contar uma história.

Cineastas, que parecia ser a peça mais badalada, divide o palco em dois andares: um com a vida pessoal de quatro cineastas, outro com o filme que estavam realizando. A obra que dialoga com o papel do teatro no mundo atual, midiatizado, em que nos relacionamos constantemente com vídeos. Não há projeções como em Ubu, mas a narrativa mistura ficção com realidade e medita sobre como o vemos nas telas influencia nossas histórias. Há um trecho no final em que se diz: “Desde que foi o cinema inventado, já foram feitos mais de 400 mil filmes em todo o mundo. Para assistir a todos, um depois do outro, você gastaria 92 anos. A ficção já é maior que a realidade.”

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