Estavam as duas na espera rotineira do ônibus de sempre, no mesmo ponto de todos os dias, para chegar no lugar comum, como fazem nas manhãs dos dias úteis. São vizinhas e companheiras de trajeto. Até que a rotina do silêncio é interrompida com a opinião de Marilda.
Continua depois da publicidade
– Fez bem aquela mãe que deixou o filho lá na prefeitura, não achastes Otila?
– Quem, Marilda?
– Não soubestes? A mãe que não tinha arrumado creche pra deixar o filho e foi na prefeitura exigir uma vaga. Disseram pra ela que não tinha. Aí, ela perguntou como ia fazer pra trabalhar, onde que iria deixar o filho. E ninguém deu bola, não tem? Então ela disse assim: “Como vou fazer? Ele vai ficar aqui com vocês, por acaso? – respirou um pouco mais e melhor antes de continuar a história:
– E tu sabes o que eles responderam pra ela? – perguntou a própria Marilda sem esperar a resposta – Que sim, que ela podia deixar!
Continua depois da publicidade
– É aí, ela deixou? – finalmente falou Otila.
– Deixou, guria! Com chiqueirinho e tudo! Não deu 15 minutos, e o conselho tutelar já estava lá, em cima!
– Credo! Como é que pode? Tem cada mãe maluca, né?
– Maluca? Pois eu acho que ela fez muito bem. Foi um protesto!
– Protesto? Estás tola? Como é que uma mãe usa um filho pra fazer protesto? Não tem cabimento. Uma mãe dessas merece é perder a guarda do filho, isso sim!
– Nossa Otilia, credo!
– Pois não chamaram até o tal do conselho tutelar pra cuidar do assunto? Isso é uma prova. Não estás vendo? Eu falei que ela estava errada. Pois se fosse certo mãe agir assim, não chamavam ninguém.
– Marilda, e se fosse contigo, sem creche e sem poder trabalhar porque não tens com quem deixar os filhos?
Continua depois da publicidade
– Sabes muito bem que, quando meus filhos eram pequenos, eu não trabalhava fora, até que estivessem na escola. O pai das crianças é quem tem a obrigação de sustentar uma casa.
– É, mas tivestes sorte. Tem mulher que engravida, e o marido desaparece.
– Aí então ela foi é burra de não ter escolhido o homem certo!
– Meu bom Jesus, que azeda que estás, Otila! Não sei não, estou te achando muito amargurada, parece até revoltada com a vida. Quando alguém rouba alguma coisa, já vais logo dizendo: “Tem que matar, colocar tudo no paredão e matar!”.
– Ah, e tu achas o que, que bandido bom é bandido solto?
– Não, claro que não. Mas acho que não precisamos sair linchando.
– É porque não é contigo. Se fosse, aposto que tu irias atirar a primeira pedra.
– Nossa Otilia, o que foi que te aconteceu?
– Eu é que não te entendo, Marilda. Defendes o cara que roubou sei lá o que de não levar uns bons cacetes e agora ficas do lado de uma mãe irresponsável? Uma sirigaita sai de casa de microssaia e vais me dizer que a culpa não será dela se for atacada na rua? Deus que me perdoe!
– Estás falando sério? Achas mesmo que a mulher tem culpa de ser violentada, e a mãe também é culpada de querer trabalho e creche? Além do mais, não precisas colocar Deus nesta conversa, mas se quiseres, lembra que Ele manda a gente perdoar o pecado dos outros, assim como os nossos. E diz ainda que para perdoar é preciso conhecer e entender, antes de tudo. Olha o caso da mãe: ela não deixou a criança mais de 15 minutos. Não houve maus-tratos nem abandono de incapaz, porque o filho ficou lá no gabinete do prefeito com mais gente, sacolinha de comida, mamadeira e muda de roupa. Além do mais, sabes o que aconteceu? Ela conseguiu a vaga na creche!
Continua depois da publicidade
– Só porque saiu na televisão, aposto! Eu ainda acho ela uma irresponsável que tinha que ser punida e ponto final! – exclamou Otila, impaciente com a vida, a demora do ônibus e o rumo da conversa.
* escrito antes do carnaval, mas ainda valido para hoje…
Leia também