Foi em 2012, noite de segunda-feira. Saiu do carro depois de estacionar numa rua residencial. Andou uns cem metros, tocou a campainha da casa onde entraria e tomou um susto ao ouvir a frase:
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– Passa a chave do carro!
Dois rapazes. Um estava armado. Eram menores que ele. Pensou em reagir, mas ao ver aquele 38 prateado, cujo cano seria encostado em sua cabeça na sequência, entregou a chave, carteira, celular. Tentou negociar que a mochila ficasse, precisava voltar para casa. Ouviu um “passa tudo” acompanhado por uma série de palavrões e xingamentos e a certeza de que eram moleques entorpecidos por alguma substância química que os encorajava. Atalho para apertar o gatilho. Sobrou o que estava vestindo: camiseta, bermuda e um par de Havaianas.
Enquanto os bandidos saiam rapidamente em direção ao carro, pensou em pegar uma pedra, jogar no para-brisa. Mas não havia nenhuma, ou seu estado de choque não deixou que encontrasse uma por perto. O tempo deles sumirem com o carro na esquina foi o que o amigo levou entre ouvir a campainha e abrir a porta. Tudo muito rápido. Na delegacia disse que não seria capaz de fazer reconhecimento. Lembrava dos bonés, das camisetas, mas seria irresponsável a recognição facial, era fácil confundir com outros. Fez o B.O. e foi para casa.
Sua mulher esperava com o dinheiro do táxi, e o nervosismo da espera já começara a empedrar o leite que amamentava a filha recém-nascida. Abraçou a mulher, beijou a filha que já estava no berço. Ainda bem que não reagira. Levaram coisas. E o que realmente importa não são as coisas. Agradeceu por estar em casa, por poder pagar um táxi. Lembrou que foi prudente estacionar em frente a um prédio bem iluminado (na delegacia disseram que aquela região era conhecida pelos sequestros-relâmpagos).
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A sensação do cano gelado da arma encostada na cabeça poderia ser prolongada dentro de um carro. O trauma do sequestro, mesmo que rápido, poderia durar para sempre. Lembrou que no dia seguinte iria para Brasília. Uma viagem a trabalho. Nas horas de lazer iria conhecer a Capital Federal, tentar assistir a uma sessão do STF, que julgava a Ação Penal 470. Outros criminosos, diferentes armas, talvez mais sofisticadas. Mas logo voltou a se concentrar em como organizar a importante viagem com os documentos que restaram em casa e sem os cartões de banco, já bloqueados. As noites seguintes em cama de hotel, com o despertador do celular lembrando dos compromissos, substituindo pela manhã o choro matinal do bebê recém-nascido, abriram espaço para o trauma. Passou a despertar assustado, com lembranças dos rapazes, um deles armado. Foi assim durante praticamente um mês. Quando a respiração voltava ao ritmo normal, a imaginação criava diferentes desfechos:
a) ao vê-los saindo com o carro, encontrava a tal pedra e acertava o para-brisa traseiro. Eles atiravam de volta, mas seguiam caminho;
b) ao ver o carro passar na sua frente, lançava a pedra, que atingia a cabeça de um dos bandidos. O outro atirava de volta;
c) ele reagia: esticava o braço direito e segurava o cano do revólver para o alto. Com o joelho, fazia o bandido cair no chão. Pegava a arma e deixava-o sob sua mira. Era surpreendido pelo outro, que vinha por trás com uma faca. Um tiro. Uma bala. Que se transforma em bala perdida.
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Lembrou-se de países em que nem bandidos nem mocinhos usam armas de fogo. Em Portugal foi alertado sobre possíveis batedores de carteira que andavam pelos bondes. Em Buenos Aires um turista foi imobilizado com uma gravata no pescoço, levaram-lhe o relógio. Recordou da sessão que assistiu no STF, refletiu sobre criminosos com e sem armas. Uma nova cena assombra seu imaginário: ele agora tem seu próprio revólver, que está apontado para os bandidos. Mas ao olhar para os lados, percebe um infinito número de homens, mulheres e crianças. Como se estivesse em uma imensa sala dos espelhos. Na imagem refletida, agora em movimento, todos encostam o cano gelado do 38 nas próprias têmporas. Todos com as mãos armadas.