Lá, no alto do morro, o menino solta pipa. Carretel na mão, revólver na cintura. Quantos anos? Quatorze?
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O menino, a pipa e o revólver. Nós assistimos, claro, sentados no sofá. Deu na televisão, semana passada, você viu? Quinze minutos de indignação, e depois a gente esquece. A gente sempre esquece!
O menino é a pipa. Voa alto pelos morros, o tráfico é seu cerol. Ou o revólver, ou a bala! Nenhuma pipa voa livre. “Escolheu”, diz o cidadão de bem, entre uma e outra garfada em seu jantar. Mas criança tem escolha? Tem?
Cidadão de bem não vê menino, tampouco pipa. Cidadão de bem só tem olhos para o revólver. Cidadão de bem é juiz, levanta bandeira, decreta cadeia. Cidadão de bem festeja quando o Estado constrói cadeia! Sua única lamúria, a lamúria do cidadão de bem, é não poder jogar meninos na cadeia.
Mas um menino, uma pipa e um revólver, enquadrados na mesma paisagem, deveriam nos retirar do sofá. Afinal, que tipo de sociedade põe revólveres nas mãos dos seus meninos que empinam pipas?
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Tenho a impressão que cidadão de bem leu “Alice no país das maravilhas” e se identificou com a Rainha de Copas. “Cortem suas cabeças!” – gritava a personagem de Lewis Carroll. O cidadão de bem é assim, grita sentenças como se fossem soluções. Gritar é sempre mais fácil do que tentar compreender, e mesmo sabendo que o sistema penal está falido, clama pela redução da maioridade penal. No fundo, o que o cidadão de bem quer mesmo, é se vingar. Vingança, entretanto, não é o mesmo que justiça.
Segundo o Mapa da Violência no Brasil, os assassinatos representam 44% das mortes não naturais de crianças e adolescentes em nosso país, o que nos coloca entre os países do mundo que mais matam crianças e adolescentes! Por outro lado, apenas 0,5% da população com menos de 18 anos está em conflito com a lei, e deste percentual, menos de 2% praticaram homicídios. O cidadão de bem deveria ler as estatísticas antes de propor encarcerar crianças e adolescentes em nossas prisões abarrotadas de maltrapilhos, enquanto doleiros fazem acordos de delação premiada em troca de imorais benefícios legais e homens de Estado cinicamente acenam para as câmeras das janelas de suas prisões domiciliares.
O menino que solta pipa, carretel na mão e revólver na cintura é a vítima desta sociedade delinquente que construímos com hipocrisia e discurso fácil, proferido entre uma e outra garfada durante o jantar. Desta sociedade que inaugura cadeias e sucateia escolas, que transforma a exceção em regra e acredita na pacificação à força da bala.