Chegar na delegacia após sofrer violência física, psicológica e moral do parceiro e ter que relatar o caso a um homem, mesmo que ele seja treinado para isso, é um dos obstáculos que desencorajam mulheres a enfrentar o longo processo de denúncia, separação e disputa pela guarda dos filhos ou bens. Caso o atendimento na unidade não seja exclusivo para elas, o caminho para o boletim de ocorrência (BO) se torna ainda mais difícil.
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Foi assim com uma jovem de 34 anos que precisou buscar pela segunda vez a Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami) de Florianópolis. Em um encontro de vítimas de violência promovido pelo Ministério Público, no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, ela relatou que se sentiu julgada pelo policial de plantão.
– Ele questionou se havia necessidade de registrar o BO por causa daquilo e se eu tinha certeza. Parecia que o policial estava do lado dele (agressor). Eu saí da delegacia pior do que entrei – lamentou.
Quando criada, a Lei Maria da Penha determinou no artigo oitavo que uma das políticas públicas que deveria ser articulada pela União, Estados e Municípios, com a função de coibir a violência doméstica, era a implantação de atendimento policial especializado para mulheres por meio das delegacias exclusivas.
Mais de uma década depois, Santa Catarina ainda é o único Estado da região Sul que une quatro urgências em uma mesma unidade. Nenhuma cidade catarinense conta com uma delegacia de atendimento exclusivo à mulher, embora 31 municípios sejam cobertos por Dpcamis.
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Na Capital, faz dois anos que o Ministério Público cobra por meio de procedimento administrativo que a Secretaria de Segurança Pública articule uma nova política para atender mulheres. Em março deste ano, a 34a Promotoria encaminhou o caso à procuradoria-geral de Justiça.
Delegadas buscam parcerias com organizações sociais

Quando assumiu a unidade de Joinville em 2015, a delegada Tânia Harada, que hoje é responsável pela gestão da Polícia Civil na região Norte, percebeu que a estrutura não era capaz de prestar um atendimento adequado às vítimas de violência. Com o intuito de tornar o ambiente mais acolhedor, ela pediu socorro a instituições sociais e grupos voluntários que abraçaram a ideia e repaginaram a delegacia. Outra medida que contribuiu para humanizar o atendimento foi a separação das demandas relacionadas à mulher e ao adolescente infrator, ainda que na mesma estrutura física.
– Melhorou muito. Mas hoje a delegacia ainda abrange a central de BOs, que faz todos os registros (da cidade) fora do horário de expediente. A ideia é tirar de lá, mas, por enquanto, continua gerando desconforto às vítimas – revelou.
O mesmo ocorre com a delegada Michele Correa, que assumiu a Dpcami da Capital há duas semanas. A primeira providência que tomou foi cortar a grama e melhorar a aparência da delegacia. Agora, espera trilhar o mesmo caminho de Joinville.
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– A minha missão é essa: quero encontrar uma saída para separar o atendimento de mulher e de adolescente infrator – diz.
Dar conta da demanda também é um desafio para a Dpcami de Chapecó. Só neste ano, a delegacia registrou mais de mil boletins de ocorrência.
– Claro que o ideal seria dividir as delegacias nas cidades onde o volume de trabalho é grande, mas, em comarcas menores, acho que é possível dar conta – destacou o delegado Rodrigo Moura.
Estados vizinhos já se adequaram à lei

No Rio Grande do Sul, as primeiras delegacias especializadas de atendimento à mulher foram criadas em 1988, muito antes da Leia Maria da Penha. O Estado gaúcho já conta com 22 unidades exclusivas para esse tipo de atendimento.
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– Nós, que atendemos grupos vulneráveis, precisamos trabalhar com prevenção, acolhimento, ambiente humanizado, com entrada separada de agressor e vítima, e espaço kids para as crianças – destaca a delegada responsável por uma das unidades de Porto Alegre, Tatiana Bastos.
No Paraná, onde também há 21 delegacias exclusivas, foram criadas políticas públicas específicas e houve padronização no atendimento. Segundo a delegada Samia Coser, de Curitiba, foi preciso quebrar a cultura de que trabalhar naquele local era sinônimo de castigo aos policiais.
– Agora, escolhemos quem tem perfil e vontade. Eles recebem capacitação e estão focados em uma única especialidade. Mesmo os que não são formados em direito, se especializam na área para dar suporte às vítimas — disse Samia.
Policiais desgastados com demandas

A dificuldade não é apenas para as vítimas. Plantonistas da Dpcami da Capital, que não quiseram se identificar, revelaram ao DC que a rotatividade de profissionais é alta e que trabalhar na unidade é interpretado internamente como “castigo”.
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– Quem trabalha aqui está estressado. A demanda é muito grande, e as especialidades são muito distintas. Uma hora você está atendendo um adolescente que cometeu um crime e daqui a pouco uma mulher vítima, cujo foco é totalmente diferente. Sem contar que todos entram pela mesma porta, é constrangedor para as vítimas – desabafou um servidor.
Como o efetivo não é suficiente, os servidores contam que é impossível separar a entrada de vítimas, infratores e agressores. A única psicóloga da delegacia também não dá conta de atender todas as mulheres e crianças.
Entre os plantonistas, existe apenas uma mulher que, pela escala, trabalha duas vezes por semana. Sem contar que, após o horário comercial e aos finais de semana, a medida protetiva só pode ser solicitada na Central de Plantão de Polícia, como ocorreu com uma mulher de 59 anos, que estava há quase um mês esperando chegar a medida protetiva solicitada à central.
– Ele tem uma arma e me faz ameaças. Tive que viajar e passar um tempo fora da cidade porque não consegui a medida protetiva naquela semana. Depois, voltei na delegacia e descobri que o registro havia se perdido, ninguém sabia de nada. Tive que fazer tudo de novo – contou.
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Na avaliação da promotora do Juizado da Violência Doméstica e Familiar de Florianópolis, Helen Crystine Correa Sanches, além da demanda da Dpcami ser excessiva, a mulher que sofre violência doméstica chega fragilizada ao serviço, o que demanda atendimento qualificado.
– Muitas vezes, ela se depara com estagiários sem qualificação e que, na maioria, são homens. Já atendi casos de recusa de encaminhamento de medida protetiva por despreparo – criticou.
O Ministério Público e o Poder Judiciário também sofrem com a falta de profissionais para atender a especialidade. Em Santa Catarina, apenas a Capital conta com juizado especializado.
Estatísticas em Santa Catarina não reconhecem casos de feminicídio
Além de juntar quatro especialidades em uma mesma delegacia, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de Santa Catarina ainda não reconhece a morte de mulheres em contexto de violência doméstica ou por questões de gênero como feminicídio nos dados de segurança disponibilizados no site, mesmo após dois anos e nove meses da alteração na legislação. Em março de 2015, foi sancionada a lei 13.104 que prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio (art. 121 do Código Penal).
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Os inquéritos de feminicídios só são encaminhados para as Dpcamis quando a autoria já é conhecida. Na Capital, todos os casos são investigados pela Delegacia de Homicídios que, segundo a coordenação das Dpcamis, tem equipe especializada para atuar com mortes violentas.
Nos Estados vizinhos, os feminicídios já são direcionados às delegacias especializadas, uma vez que elas contam com o histórico de violência doméstica de boa parte das vítimas.
– O atendimento pela delegacia especializada qualifica a investigação tendo em vista que, muitas vezes, já tem um histórico de violência. Temos mais condições e propriedade para trabalhar o assunto, principalmente no que tange às tentativas de homicídio, em que a proteção dessa mulher passa a ser a parte mais importante – destacou a delegada Tatiana Bastos.
CONTRAPONTO
Coordenadora das Dpcamis promete mudar realidade
A delegada Patrícia Maria Zimmermann D’Ávila, que é coordenadora das Dpcamis em SC, promete qualificar o atendimento à mulher até o início do ano que vem. Um curso de capacitação que ocorreu na quarta e quinta-feira desta semana com os delegados das especializadas foi o primeiro passo para a mudança. Segundo a coordenadora, o encontro serviu não só para orientar os policiais, mas para ouvir as demandas de cada uma das unidades.
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– Essa oportunidade de ouvir o pessoal da ponta nos traz um ganho espetacular, é uma troca de experiência, além de ter a oportunidade de ver o que eles estão precisando – disse.
A delegada garante que um estudo está sendo desenvolvido pela SSP com o intuito de desmembrar ao menos a demanda do adolescente em conflito com a lei. A formação de novos policiais que ocorre neste ano é uma aposta não só para separar as equipes, mas reforçar o efetivo das unidades.
Patrícia também promete enfraquecer a ideia de que trabalhar na Dpcami é um castigo. Ela pretende, com as capacitações promovidas pela Academia de Polícia Civil, direcionar os profissionais com perfil ao atendimento de grupos vulneráveis.
– Estamos estudando o perfil do policial para que não seja mais um lugar de castigo, mas que seja uma unidade que tenha gente sensível ao tema.
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Sobre o atendimento prestado só por mulheres, a delegada entende que não há necessidade de classificação dos profissionais por gênero e sim por aptidão. Os alunos da nova academia de polícia estão tendo acesso a novas disciplinas que trabalham as violência sexual e contra à mulher.
Sobre a falta de atendimento especializado em horário de plantão, Patrícia afirmou que pretende articular uma nova escala para que dois delegados fiquem à disposição.
Conheça os caminhos para denunciar:
