As recentes eleições na Turquia puseram em evidência as fissuras no domínio do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), do presidente Recep Tayyip Erdogan, mas também a emergência de novos atores políticos. Para o cientista político turco Naif Bezwan, da Faculdade de Economia e Ciências Administrativas da Universidade Mardin Artuklu, em Mardin, o país tem dois caminhos diante de si: um governo de coalizão ou novas eleições.

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A seguir, uma síntese da entrevista de Bezwan a Zero Hora, concedida por e-mail na terça-feira.

Turquia assiste ao fim da era de um presidente superpoderoso e polêmico

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Analistas apontaram os efeitos da crise econômica mundial como causa da perda de apoio a Erdogan. Como o senhor define a situação econômica do país na presente década?

A força dominante por trás do sucesso eleitoral do AKP em 2002 foi a crise econômica destrutiva em 2000-2001. Uma vez eleito, o governo do AKP conseguiu gerar progresso econômico e prosperidade relativa, impactando a vida de cidadãos comuns de uma forma muito positiva. Por outro lado, o AKP lançou uma política de reformas em direção à entrada da Turquia na União Europeia que foi vista por muitos como um meio de assegurar e manter a democracia no país. Finalmente, os líderes do AKP tiveram uma atitude corajosa em relação às elites militares e burocráticas corruptas e autoritárias, desmantelando um sistema conhecido como tutela militar. Essas políticas foram as maiores fontes de apoio eleitoral sucessivo ao governo do AKP desde 2002. Mas a situação mudou de forma dramática depois de 2011. Quanto mais o AKP tentava consolidar sua base de poder, mais autoritário se tornava. Houve grandes malogros em todos esses terrenos, para não dizer retrocesso puro e simples. Há uma desaceleração do crescimento econômico, um aumento da inflação e do desemprego, uma desvalorização substancial da lira turca e sinais crescentes de capitalismo baseado em tráfico de influência e escândalos de corrupção. Reformas democráticas foram abandonadas, enquanto as relações com o Ocidente em geral e com a União Europeia em particular estão em seu nível mais baixo. Tudo isso criou uma sensação de insegurança e descontentamento mesmo entre alguns segmentos pró-AKP, numa tendência que culminou com a derrota eleitoral.

Em países como Grécia e Espanha, ondas de protesto popular contra políticas de austeridade tiveram impacto em eleições recentes. Em que medida as últimas eleições foram influenciados por movimentos como os do Parque Gezi ou, pelo menos, da Praça Taksim?

A Turquia não experimentou uma crise econômica comparável às da Grécia ou da Espanha até agora. Essa é uma boa notícia. Mas, apesar disso, há indícios substanciais de uma crise iminente. A crise resulta especialmente da natureza do sistema político da Turquia. Para ser exato, está relacionada a um corpo político extremamente centralizado, orientado para o Estado e ideologicamente informado, que contradiz as realidades históricas e sociais do país. Esse corpo político é simplesmente incapaz de acomodar a pluralidade e a diversidade multiculturais, multilinguísticas e multiétnicas do país. Como ficou demonstrado pela última eleição, há uma grande discrepância entre o regime político da Turquia e suas diversas sociologias políticas. De fato, a Turquia, em todas as suas facetas, é uma sociedade plural e federal, enquanto o sistema político e administrativo continua “unitário”, baseado em uma ideologia oficial de Estado anacrônica e antidemocrática. Enquanto o atual sistema político, com sua constituição autoritária, permanecer de pé, testemunharemos a emergência de novos movimentos políticos e sociais e o crescente fortalecimento dos que já existem.

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O presidente Recep Tayyip Erdogan apela por responsabilidade da oposição a fim de manter os avanços sociais e as conquistas democráticas. Essa é uma base razoável para uma nova coalizão governamental?

Dada a enormidade dos desafios que a Turquia enfrenta em suas políticas doméstica e externa, há muitas razões eloquentes para se formar um governo de coalizão sobre uma base mais ampla. Quatro grandes áreas parecem ser importantes para isso: redesenhar uma política externa falida, especialmente em relação ao Oriente Médio, redefinir a quase rompida relação com a União Europeia, retomar e fortalecer o processo de paz com o objetivo de alcançar uma paz negociada com os curdos e reviver a economia por meio de inovação, políticas justas para elevar o padrão de vida das pessoas comuns, reformas estruturais e educação de qualidade. O problema é que existe hoje uma atmosfera política intoxicante no país. O senhor Erdogan, com seu partido e seus seguidores, está sentado em um lado do espectro político, enquanto o resto ocupa o lado oposto. Se há algo que une a oposição, é o repúdio comum ao estilo e à substância da liderança política de Erdogan. Ainda que com argumentos e objetivos totalmente diferentes, os partidos de oposição rejeitaram veementemente o sistema presidencial almejado por Erdogan e a grande quantidade de manobras políticas e legislativas do governo do AKP para perpetuar seu governo e sua posição hegemônica.

Como o senhor define o HDP? É apenas um partido curdo ou se tornou um partido da “gente comum” como o Podemos espanhol?

Embora o HDP seja essencialmente um partido curdo em termos de seus integrantes, seu alcance e visão não são de nenhuma maneira limitados aos curdos e às demandas curdas. Ele inclui membros e representantes de diferentes grupos sociais minoritários como organizações de esquerda, círculos urbanos progressistas, alevis, armênios, ciríacos, árabes e ativistas do movimento LGBT. Em suma, o HDP é um partido pluralista, inclusivo e híbrido que reflete a natureza federal, multinacional e multicultural de fato da Turquia. Ele luta a favor de autodeterminação nas áreas da Turquia predominantemente habitadas pelos curdos e por autodeterminação para todo o país por meio da devolução de poderes às regiões. O partido propõe uma sociedade baseada na igualdade de gêneros e em bandeiras ecológicas. Ele se define como um partido das populações despossuídas e oprimidas, assim como das diferentes comunidades religiosas.

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Aonde vai a Turquia?

Ou haverá um governo de coalizão, ou haverá novas eleições. De acordo com a Constituição turca, o novo parlamento poderia formar um governo em até 45 dias depois de sua sessão de instalação. Se isso não ocorrer, deveria haver novas eleições. A questão é: nenhum dos maiores partidos políticos até o momento parece estar particularmente interessado em constituir um governo de coalizão. Mas as necessidades políticas e a pressão pública poderiam mudar a atitude dos partidos políticos.