Um líder carismático nascido numa família migrante e que, na adolescência, foi vendedor ambulante para ganhar trocados. Um partido que chega ao poder em meio a uma crise econômica galopante e promete saldar uma imensa dívida social. Uma década e meia de vitórias eleitorais acachapantes. Uma crise política que apanha o mundo de surpresa e ameaça abrir um novo ciclo na história da nação.

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Se o leitor adivinhou o país a que se refere o parágrafo acima, pode se considerar bem informado sobre a situação da Turquia.

Depois de 13 anos de predomínio do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco – pronuncia-se Aquepê), do presidente Recep Tayyip Erdogan, a eleição do último domingo assinalou um ponto de virada na história turca. Embora tenha sido o mais votado, com 40,8% dos votos, o partido de Erdogan e do primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, ficou muito abaixo dos 49,8% obtidos em 2011. Para uma sigla acostumada a obter maiorias parlamentares folgadas, o resultado é modesto. Tudo torna-se mais dramático porque o AKP almejava sair da eleição com uma maioria absoluta de cadeiras. Esse seria o ponto de apoio da reforma constitucional almejada por Erdogan, na qual sua função atual, de presidente da República, seria fortalecida.

– O partido governista entrou na eleição com 327 cadeiras, mas saiu com apenas 258. É a primeira vez, desde 2002, que o AKP não conseguiu conquistar a maioria parlamentar – afirma o cientista político turco Naif Bezwan.

Turquia tem dois caminhos diante de si: governo de coalizão ou novas eleições, diz especialista

Se a Turquia fosse apenas mais um país no entremeio de Europa e Oriente Médio, essa situação seria banal. Há, porém, muito mais em questão. A república turca faz fronteira com Grécia, Geórgia, Irã, Iraque e Síria. É o único Estado do Oriente Médio a fazer parte do seleto clube da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), sem a qual a história recente dos Bálcãs, do Afeganistão e da Líbia seria muito diferente. É pelos aeroportos turcos que passam a maior parte dos voluntários europeus e americanos arregimentados por grupos como o Estado Islâmico (EI) para lutar na guerra civil síria. Tudo isso faz da Turquia um ator fundamental do jogo do poder na região.

Embora não desfrute do mesmo prestígio político da década passada – especialmente por seus rasgos autoritários, que incluem a prisão de jornalistas de oposição -, Erdogan está longe de ser visto como um aprendiz de ditador.

– Não se deve menosprezar as mudanças sociais introduzidas pelo AKP. Houve mudanças importantes, especialmente na inclusão social das mulheres. Isso explica, em parte, o apoio a Erdogan – diz Monique Sochaczewski Goldfeld, professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-maior do Exército (Eceme).

Caminhos cruzaram-se com o do Brasil

Os caminhos do Brasil e da Turquia cruzaram-se em mais de uma oportunidade nos últimos anos. Em 2010, os governos turco e brasileiro avalizavam uma proposta de troca de urânio enriquecido do Irã como passo em direção a um acordo nuclear. Dois anos depois, quando movimentos de protesto despontaram nas ruas brasileiras e turcas, Erdogan acusou interesses estrangeiros:

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– Eles estão fazendo o máximo possível para conseguir no Brasil o que não conseguiram aqui. É o mesmo jogo, a mesma armadilha, o mesmo objetivo.

Nos últimos dias, o agora presidente suavizou o tom. Após o revés eleitoral, trata-se, para Erdogan, de apelar à oposição por um governo de coalizão.

– Todos devem deixar o ego de lado e formar o quanto antes um governo – disse.

Não será fácil. O principal partido de oposição, o CHP, social-democrata, saiu do pleito denunciando o autoritarismo governamental. Já o HDP, baseado no eleitorado curdo, alcançou 13,12% dos votos e saltou de 29 para 80 cadeiras. Números surpreendentes para uma agremiação que se propõe a dar voz a causas longamente silenciadas, como as de curdos e armênios.