A noite de Natal geralmente é esquisita, carregada de euforia num primeiro momento e de melancolia no segundo. Na adolescência eu temia essa noite, pois não gostava de ver quase todos chorando no pico da melancolia. Na vida adulta, o Natal só voltou a ter sentido para mim quando nasceram meus filhos, quando entendi que você precisa ser sempre necessário em vez de necessitar o tempo todo, como bem sacou o escritor Jonathan Franzen em seu romance As Correções. Entendi ainda como a paternidade é também uma forma de literatura; mas afinal, tudo é literatura, como já avisou o escritor chileno Alejandro Zambra no começo de seu livro Bonsai: No final ela morre e ele fica sozinho. Embora na realidade ele ficou sozinho vários anos antes da morte dela, Emília. Bom, supomos que ela se chama, ou se chamava Emília, e que ele se chama, se chamava ou continua se chamando Júlio. Júlio e Emília. No final Emília morre e Júlio não morre. O resto é literatura. Meu pai sempre conta que certa vez se atrasou para me pegar, e que eu, ao invés de esperá-lo na porta da escola, saí caminhando. Eu não lembro de nada disso, tinha apenas oito anos. Mas, segundo ele, eu vinha peregrinando pelos canteiros da antiga Avenida dos Estados, em Balneário Camboriú, e até encarei uma trovoada de fim de tarde, daquelas rápidas e torrenciais. Não me encontrando na escola, ele deu voltas pelos quarteirões próximos e retornou pelo caminho que fazíamos diariamente. Me localizou já próximo de casa, todo molhado e com cara de choro, caminhando entre os canteiros da avenida. E toda vez que ele conta essa história, me diz que aquele dia, ao não me encontrar na escola e me ver todo molhado e desprotegido, foi um dos mais angustiantes da sua vida. Algo semelhante acontece no início do primeiro capítulo de Formas de Voltar para Casa, outro livro do chileno Alejandro Zambra. Nos primeiros parágrafos, o personagem principal, ainda jovem, relata sua primeira grande adversidade, ao se perder de seus pais, e como ele chegou antes deles em casa: Nesta noite minha mãe me carregou para a cama e me disse, talvez sabendo que eu fingia dormir, mas que a escutava com atenção: Teu pai tem razão, agora sabemos que não te perderás, que sabes andar pelas ruas. Mas deves concentrar-se mais no caminho. Tens que caminhar mais rápido. Escutei. Desde então caminhei mais rápido. Na verdade, um par de anos mais tarde, na primeira vez que falei com Cláudia, ela até me perguntou porque eu caminhava tão rápido. É preciso perder-se para encontrar-se: talvez por isso parecemos tão perdidos (e presas fáceis do presentismo desenfreado) nesta época.

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Sándor Lénard, famoso escritor húngaro, viveu discretamente em SC

Companhia das Letras fica com parte do catálogo da Cosac Naify

Diário de um leitor

Ares-condicionados, de Demétrio Panarotto: um do fundadores da lendária banda Repolho, de Chapecó, o professor de literatura Demétrio Panarotto estreia no conto depois de três instigantes livros de poemas. E justamente a precisão do poeta, com cada palavra em seu devido lugar, e um incrível senso metafórico, faz desta reunião de breves narrativas uma pequena obra-prima, um belo exemplo do caminho que o conto pode nos levar. “O passado se transforma em eco e sempre retorna. Nem sempre com a mesma roupa, mas ele retorna. Na memória e no esquecimento. E os fantasmas?, pois bem, como alguém me perguntou pelos fantasmas, só posso dizer que não há cidades nem textos sem fantasmas”.

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Vídeo: 10 livros para dar de presente no Natal, por Pam Gonçalves

A Resistência, de Julián Fuks: o escritor argentino Ricardo Piglia formula em seu ensaio La Novela Polaca uma série de considerações sobre a formação da tradição literária argentina e usa Ferdydurke, do escritor polaco Witold Gombrowicz, como um eixo ou contraeixo para as questões centrais do romance argentino no século 20. Piglia afirma que toda verdadeira tradição é clandestina e, retrospectivamente, se constrói na forma de uma espécie de complô. Fuks, argentino radicado desde criança no Brasil, vem construindo um dos projetos mais sólidos na literatura contemporânea brasileira e também funda sua literatura numa espécie de complô, contra a sua identidade, contra os limites da literatura. Uma das chaves desta narrativa é a ditadura na Argentina em 1970 e o exílio do casal de psicanalistas e militantes em São Paulo, mas o ponto central é mesmo aquele poder que faz todos se curvarem e que tem apenas cinco letras: culpa. Narrado pelo filho caçula do casal, que tenta investigar os silêncios da adoção de seu irmão, o romance é uma viagem visceral às intimidades e incertezas do seio familiar: “Desde sempre meu irmão soubera que havia sido adotado, era o que meus pais diziam, e esse desde sempre me deixava intrigado, ou me intriga agora: como dizer algo dessa ordem a uma criança que mal domina as palavras mais simples, com que distância ou frialdade ditar, mamãe, papai, nenê, adoção?”.