É tudo verdade: Sganzerla é dos maiores cineastas do mundo! Quando seu primeiro longa-metragem foi lançado, alguns críticos mais espertos disseram que o filme estava 20 anos à frente. Passaram-se mais de 40 anos e ainda é o filme mais moderno do cinema brasileiro. Se em 68 eram 20 anos de vanguarda, em relação à grande parte do cinema brasileiro atual, ele deve estar no mínimo 120 anos à frente agora.

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::Leia mais: Dez anos após sua morte, Rogério Sganzerla ainda é clássico pouco explorado em Santa Catarina, onde nasceu

Sganzerla foi um dos primeiros a gritar aos quatro ventos do mundo uma das mais puras verdades do cinema mundial: que José Mojica Marins é um gênio total. Em outro golpe fantástico, impulsionou o primeiro suspiro criativo de outro gigante, convidando um jovem Ivan Cardoso para ser seu assistente em Sem Essa, Aranha de 1970 (e não existe um dia em que Ivan não fale com carinho e saudade do amigo Rogério).

Consagrou de vez o Silvio Renoldi como um dos maiores montadores de todos os tempos e passou pelo cinema brasileiro como um furacão, sempre aos gritos. E apesar de só ser catarinense de nascimento, já que sua produção é toda centrada em SP e Rio, Sganzerla escolheu uma simbólica figura pública catarinense como tema de seu primeiro-longa metragem: João Acácio Pereira da Costa, O Bandido da Luz Vermelha, cometendo a façanha de transformar um filme experimental em estrondoso sucesso comercial.

Suas transgressões só ficaram célebres quando ele foi pra SP, mas foi na cidade de Joinville que o bandido iniciou sua vida de delitos, mesmo lugar onde eu também tive a sorte de cometer meus primeiros crimes. No final de 1997, o bandido foi libertado, retornou a Joinville e foi assim que tive meu primeiro contato com os filmes do Rogério. Eu tinha 15 anos.

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Todos os dias os jornais mostravam o cotidiano pós-prisão do bandido, ele dando entrevistas de óculos escuro com a etiqueta de preço pendurada entre os olhos. Na época, eu já tinha um costume que tenho até hoje, as famosas “camisetas personalizadas”. Eu desenhava à mão camisas ultra-coloridas de meu conjunto musical, também procurado por delito e depredação em várias cidades do país: Os Legais.

Comecei com tinta de parede, e por volta de 2001 me mudei pra tinta de tecido. Com a camisa em mãos, obrigava celebridades (que na época eram principalmente músicos de bandas de hardcore) a usarem a camisa, na tentativa de promover nossas construtivas canções e dominarmos o mundo.

Me pareceu a ideia mais mirabolante do universo quando percebi que poderia obrigar o bandido a usar uma das minhas amorosas camisetas. Se ele não tirava nem a etiqueta do óculos novo, significava que passaria dias e dias dando entrevistas para emissoras de televisão do país inteiro, dia e noite delirando em frente às câmeras com a camisa de sua banda preferida Os Legais.

Por várias e varias tardes fui ao centro de Joinville com a camisa em uma sacola. À boca miúda se dizia que o lugar mais fácil de encontrar o bandido era nas mediações de uma loja de roupa popular no centro. Andei ao sol, procurei, esperei, perguntei, mas nunca consegui encontrar o bandido e a camisa foi pra outra pessoa.

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Em janeiro de 1998, eu passava alguns dias das férias de verão na casa de praia de uns amigos, em São Francisco do Sul. O telefone toca, e o pai de um deles, médico legista renomado na cidade, é obrigado a interromper as próprias férias pra atender um estranho chamado: realizar a autópsia do bandido da luz vermelha, que havia sido assassinado. Nessa confusão toda, alguém me recomendou o filme.

Em um ato de delinqüência juvenil, atirei uma fita VHS pela janela de uma locadora sem que os funcionários notassem e enlouqueci com o que vi em casa. E devorei todos os filmes de Sganzerla que encontrava pela frente com a mesma força que a Wilza Carla devora comida em Monstros de Babaloo (de Elyseu Visconti). Meu preferido é A Mulher de Todos.

Muitos anos depois, em 2004, a Helena Ignês participou de uma homenagem ao Rogério em Florianópolis. Mais uma vez, desenhei uma camiseta personalizada, dessa vez tive sucesso e consegui encontrar Janete Jane, a namorada do bandido! Levei um catálogo da retrospectiva de Cinema Marginal (aquele da capa laranja) pra ela assinar, que não era meu e nunca devolvi pro dono (mas paguei com um livro três vezes mais caro).

Na camiseta, desenhei Angela Carne e Osso, montada em um cavalo saindo das águas em direção as nuvens na velocidade de um raio. O cavalo tem um p** enorme, muito maior que o próprio cavalo! Ao ver a camiseta, muito simpática e maravilhosa, ela disse: “Nossa, mas com um cavalo desses a Angela Carne e Osso vai longe, hein?”.

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Fiquei tão emocionado ae ver uma musa do cinema da importância e magnitude dela encostando na camiseta e sendo tão querida, que inventei uma desculpa esfarrapada pra eu mesmo ficar com a camisa. Depois me arrependi amargamente, me sentindo muito mal educado por tomar o presente de volta.

A camisa logo em seguida também foi usada pelo amigo bêbado e artista ET da banda Muzzarelas, mas também peguei de volta. Quem no fim acabou ficando com a camisa, muitos anos depois, foi um baterista genial muito conhecido em Santa Catarina e na China chamado Peter Gossweiller.

Quanto aos filmes do Rogério, perdi as contas de quantas vezes vi cada um deles. Vi tantas vezes quanto vi os filmes do Russ Meyer, O Segredo da Múmia (de Ivan Cardoso), Ritual dos Sádicos (de Mojica), Pink Flamingos (de John Waters), Bang Bang (de Andrea Tonacci), Sweet Movie (de Dusan Makavejev) ou United Trash (de Christoph Schlingensief)!!! Quero rever cada filme desses mais de mil vezes! São filmes gritados, histéricos, suados, dementes, livres e desesperados!! Possessão e arrebatamento.

Poucos no Brasil e no mundo fizeram filmes tão possuídos quanto o Sganzerla. Quando me perguntam se estou feliz com o que vem sendo feito no cinema independente e underground brasileiro (que pra mim é de onde saem 99% dos filmes inventivos feitos no Brasil), digo que sim, mas também sinto, e toda hora digo isso, que preciso e quero ver/fazer cada vez mais filmes histéricos e desesperados.

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Que, nas palavras do próprio Rogério, sejam “fusão e mixagem de vários gêneros pois pra mim não existe separação de gênero. Então fiz um filme-soma; uma far-west mas também musical, documentário, policial, comédia ou chanchada (não sei exatamente) e ficção cientifica”. Filmes criados em estado de delírio, filmados como habitualmente não se deve filmar, filmes que roubam tudo e a todos e que também se deixam roubar, filmes de todos os preços, volumes, formatos e defeitos!!

Estragados, retardados, nojentos, lindos, coloridos e desbotados! Com faunos, monstros gigantes, música barulhenta, gente pelada correndo e se arrastando na areia da praia, todo tipo de calamidade saindo do céu e da terra!! Filmes histéricos e alucinados!!!! Filmes histéricos e alucinados!!!! Filmes histéricos e alucinados!!!!