Cristina Kirchner recebe Dilma Rousseff na Casa Rosada. É janeiro de 2011. Em um dos salões com janelas para a Praça de Maio, a presidente argentina está entusiasmada, quer apresentar à colega brasileira um de seus locais preferidos da residência presidencial: o balcão a partir do qual Evita Perón fazia seus famosos – e dramáticos – discursos aos “descamisados”.
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Cristina nunca foi Evita, mas poucas personalidades políticas da Argentina utilizaram a carga emocional do nome tão bem quanto a presidente que deixará, em dezembro, El Sillón de Rivadávia, como é chamada a cadeira presidencial. Ganhe quem ganhar neste domingo, o certo é que um jeito pitoresco, inigualável, de governar deixará de habitar a Casa Rosada.
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Iniciado há 12 anos pelo marido de Cristina, Néstor, o projeto de poder do casal K foi interrompido pela morte prematura do ex-presidente, em 2010. Dava mostras de cansaço na última eleição legislativa, a partir da qual Cristina pretendia reformar a Constituição para tentar uma re-releição. Não deu.
Lá se vão 12 anos, e o estilo K – para o bem e para o mal – paira sobre a política, a economia e até sobre a moda argentina. Néstor não tinha papas na língua. Certa vez, após assinar um acordo com o FMI, acusou a diretora-gerente à época, Anne Krueger, de ser “responsável pela decadência” do país. Também se comportava de forma curiosa. Alto, estrábico e um tanto desengonçado com seus ternos maiores do que ele próprio, Néstor adotava a informalidade no trato com seus pares nas reuniões de cúpula.
Uma vez, colocou a mão na perna do ex-presidente dos EUA George W. Bush, durante uma conversa em Washington. Para enfatizar o trecho de sua fala, deu uma sutil apertada na coxa do colega, capturada pelas câmeras de TV, para desespero do americano, que não sabia muito bem o que fazer.
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Cristina não carrega nas ações – uma pequena ousadia foi a dancinha inesperada em um ato de campanha de seu candidato escolhido para domingo, Daniel Scioli, há duas semanas. Ela prefere o visual e o discurso: aos 61 anos, fala aos pobres usando relógios rolex, bolsas Louis Vitton, sapatos de Christian Louboutin e o inconfundível rímel preto – acentuado, durante meses a fio, como sinônimo de luto após a morte de Néstor.
– É nossa rainha – gritava uma militante, na quinta-feira, quando Cristina foi muito mais aplaudida ao ter seu nome pronunciado no Luna Park do que nas falas de Scioli e do vice Carlos Zannini juntos.
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Nesses 12 anos, tudo passou pela letra K: políticos K, empresários K, juízes K, procuradores K, imprensa pró e contra K. O casal aparelhou sindicatos e abusou do hiperprotagonismo no cenário político e publicitário. Também lançou mão de uma série de medidas populistas, versões argentinas do Bolsa Família, que aqui têm outros nomes: bolsa desemprego, bolsa para detentos, bolsa escola, “bolsa para tudo”, segundo os críticos. São US$ 18,3 bilhões gastos com programas sociais em 2015, cerca de 13% do orçamento nacional e 3,5% do PIB do país.
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– Cristina joga agora com a estratégia do medo. Os menos favorecidos a amam. Imaginem se ganha Mauricio Macri e lhes tiram essas benesses? – diz um interlocutor da oposição.
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Tocando fundo no nacionalismo argentino, Néstor e Cristina retomaram a Aerolíneas Argentinas, fundada por Perón, que teve parte das ações vendidas para a espanhola Ibéria nos anos Carlos Menem. Também “renacionalizaram” a YPF, a empresa de petróleo – 51% das ações, antes de propriedade da Repsol, voltaram a ser do Estado, em um processo de expropriação que até hoje os industriais não perdoam.
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No plano internacional, o casal K cerrou fileiras com os chamados bolivarianos – Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, e José “Pepe” Mujica, no Uruguai. Mais do que Nestor, Cristina ganhou o povo. Mas colecionou inimigos com um discurso contra grupos industriais, bancos e imprensa. Cristina levantou uma torcida fiel, mas desagradou a muitos. Nas ruas de Buenos Aires, há quem esteja farto do discurso de enfrentamento permanente.
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– Que se vaya la bruxa (Que a bruxa vá embora). Ela só fez dividir o país – afirma um jovem de classe média, sentado em um banco da Praça de Maio.
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Como bruxa ou como rainha, com Néstor ou Cristina, o peronismo, essa corrente política multifacetada fundada por Juan Domingo Perón, ganhou uma roupagem do século 21 que pode fazer o velho general se revirar no caixão: o kirchnerismo. Este não acaba ao fechar das urnas no domingo. Com ou sem a vitória de Scioli.
Diário
Na festa de encerramento da campanha do candidato governista Daniel Scioli, na quinta-feira, no Luna Park, o laranja destoava do tradicional azul e amarelo, as cores da bandeira argentina – e, por tabela, do peronismo. É a “onda laranja”, tema de campanha da Frente para a Vitória. Havia até um veículo estranho, com uma televisão adaptada ao para-choque com imagens do candidato.
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Há alguma imprecisão ideológica quando Cristina Kirchner, Juan Domingo Perón e Ernesto Che Guevara aparecem desenhados na mesma bandeira, não? Eram imagens recorrentes no Luna Park.
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Os bottons com imagens de Scioli, Cristina e Perón, da vendedora Carla Nascimiento, encalharam. Eram oferecidos a nove pesos (equivalente a US$ 1 no câmbio oficial) na frente do Luna Park. Os militantes olhavam, perguntavam o preço e agradeciam.
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A cada período eleitoral, o mercado de livros sobre política na Argentina dispara. Na vitrine da famosa livraria El Ateneu, na Rua Florida, títulos como Mentirás tus mortos, Los Agentes de Nestor y Cristina, El Relato Peronista, sem falar dos que prometem “verdades” sobre o caso Nisman, o promotor que investigava as relações do governo Kirchner com o Irã, cujo corpo foi encontrado em seu apartamento em Puerto Madero. Até hoje, aliás, os argentinos se perguntam se foi suicídio ou assassinato.
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A previsão é de que os argentinos só descubram se haverá ou não segundo turno por volta das 3h de segunda-feira. A votação é manual. Mas há a promessa de que os autoridades eleitorais contabilizarão primeiro os votos para presidente.

*Zero Hora