A cidade reencontrada
Alguns dizem: o Brasil despertou. Eu diria: um certo Brasil “deitado em berço esplêndido” despertou. Semanas como esta, em que centenas de milhares de pessoas vão às ruas, parecem ter o peso de meses e anos.
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Ninguém pode afirmar que seremos mais os mesmos depois das imagens de nossas televisões e computadores. Mas não nos enganemos: o Brasil está em ponto de ebulição há muito tempo.
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Contra Belo Monte, contra Marco Feliciano, junto com as Vadias, com os Negros e os Homossexuais. Não somos mais Silvas ou Oliveiras: somos Munduruku e Kaiowá. Mesmo os presidiários, estes senhores que, por motivos diversos, retiramos não apenas a liberdade, mas a própria voz, reproduzem o seu ato mudo com ônibus em chamas. Não à toa escolheram o transporte coletivo: este é o estopim de tudo.
Do playboy da beira-mar à diarista de Biguaçu, ao pescador do Rio Vermelho ao gaúcho que mora no Campeche. Da família tradicional que mora em Coqueiros, ao universitário da Trindade: o transporte público nos violenta todos os dias. Tenhamos manifestações ou não.
A ponte, fetiche a ser protegido por tantos policiais, não precisa de estudantes para fechar todos os dias. Basta experimentar atravessá-la das 17h às 20h. O modelo de desenvolvimento escolhido pelo governo baseado nos incentivos fiscais às montadoras de carros não nos ajuda em nada neste sentido: a cada dia que passa, temos mais carros nas ruas.
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Nossa economia – o desenvolvimento com distribuição de renda – depende disso. Assim, as cidades ficam abandonadas. O governo, que em outros tempos baseava sua práxis política no Orçamento Participativo e o direito à cidade, abandonou qualquer tipo de política urbana inclusiva. Como consequência, temos trabalhadores endividados, morando longe de seu trabalho, e uma cidade cada vez mais cara.
Uma revolta quando eclode não pode ser completamente controlada. Em toda e qualquer manifestação estão presentes os mais diferentes sujeitos e desejos. Alguns lutam pela inócua e moralista pauta da corrupção.
Não se pode propriamente condená-los – muito embora eu nunca tenha encontrado alguém que, em sã consciência fosse a favor da corrupção. Para além disso, há um desconforto, um verdadeiro mal-estar na vida de nossas cidades.
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Tudo começa, para muitos de nós, no instante em que colocamos nossos pés fora de casa. Não podemos viver nossas cidades. Não podemos caminhar à noite. Não podemos beber com nossos amigos pela madrugada – a lei seca está aí, e não há ônibus nesses horários.
Por isso tomar as ruas é algo tão forte. Esta cidade, que está proibida para muitos de nós, só pode ser vivida no instante que as reivindicamos como nossa. Com os pés no asfalto e o grito preso na garganta por Tarifa Zero.
*Fernando J. C. Bastos Neto, 25 anos, é formado em Direito e cursa mestrado em Literatura pela UFSC