Faz 13 anos que nossos heróis estão no poder, e faz 13 anos que eles se parecem cada vez mais com alguns de nossos inimigos. Nesse período, conseguiram operar o milagre da transformação de miseráveis famintos em consumidores satisfeitos, sem no entanto lhes oferecer cidadania de fato, como não nos deixa esquecer Frei Betto. Descobrimos, nesses anos, entre a estupefação e o desapontamento, que a esperança e as utopias já não são caminho, nem norte, nem nada: a regra é o pragmatismo insensível, as alianças inomináveis, a mentira eleitoreira, o cinismo desbragado. Neste 13º ano de poder, nossos heróis são obrigados a administrar uma crise econômica e uma convulsão política que eles ajudaram a gestar. A abominável prática de os fins justificarem quaisquer meios já foi superada há muito por eles. Agora, na hora do aperto maior, troca-se o último cavalo pelo reino que ainda resta. E a luta continua.

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Isso tudo me veio à cabeça sábado à noite, de forma desordenada e confusa, às vezes entre lágrimas, no Devassa On Stage, em Florianópolis, durante o mais que aguardado show de 30 anos da Legião Urbana. Sempre que uma banda volta à estrada com seus velhos hits, os críticos debatem se afinal aquele repertório ainda faz sentido, se fala ao público de hoje, se pode reverberar em uma sociedade tão mudada. Pois sábado reencontrei o som da minha infância/adolescência, executado pelos senhores adolescentes de então, e ele não mudou, nem se corrompeu: o legado de Renato Russo continua íntegro, sua mensagem segue fazendo sentido nesses dias tão estranhos.

Se nos anos 80 e 90 suas canções soavam como protesto ou prenúncio do que poderia vir a ser, neste 2015 de heróis no poder elas evocam, a um só tempo, a indignação e a melancolia daquilo que poderia ter sido e não foi, da chance que tivemos e desperdiçamos, da página que viramos sem ler. Talvez por isso o show energize, pois nos relembra que somos tão jovens e temos todo o tempo do mundo, que na política e no amor é possível recomeçar, refazer, tentar de novo, hoje e sempre. Sem cinismo, sem justificativas furadas, sem leiloar princípios, sem negociar dignidade, sem se humilhar.

 No livro “Renato Russo de A a Z”, o jornalista Arthur Dapieve escreve que uma única linha norteava a poética do líder da Legião: “a busca da ética perdida”. E foi bem assim: cantar Índios, Fábrica, Tempo perdido e Perfeição com Dado e Bonfá em Florianópolis foi a maneira mais visceral de reencontrar a ética há muito descartada por quem ocupa o poder. Descobrimos que ela continuava enterrada no peito, à espera de ganhar voz e protagonismo. Bastava que alguém respeitável, como um dia foram muitos de nossos heróis, a evocasse novamente. 

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Naquele histórico sábado à noite, véspera de um 13 de dezembro em que algumas pessoas saíram às ruas para pedir intervenção militar em vez de relembrar o obscurantismo do AI-5, a ética como valor inegociável renasceu aos gritos de uma multidão e acordou a vizinhança inteira. Muitíssimo obrigado, Legião, por esse alento e essa alegria. Feliz 2016 para vocês também.

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