Quem também passa o Natal em casa é Maria de Lourdes Costa do Rosário, 70 anos. A Mamãe Noel do Guanabara _ ou vovó, como ela brinca, por causa da idade _ nasceu há 19 anos. Antes, porém, quando Maria contava com apenas 27 anos e era “a florzinha do bairro”, em suas palavras, resolveu surpreender o único filho se fantasiando de Papai Noel.

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Ela vestiu uma calça jeans masculina surrada, um paletó, a bota do marido e cobriu a rosto com uma máscara de papelão, apenas com um respiro sobre os olhos, o nariz e a boca.

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-Foi tudo improvisado, porque não tínhamos dinheiro para uma vestimenta convincente. Naquele ano, além de aparecer para o meu menino, fui à casa de um vizinho, que me ofereceu vinho em troca da visita. Mas como tomar a bebida com aquela máscara? O jeito foi beber com canudinho-, relembra, com um sorriso leve pairando no rosto curtido pelo sol.

Anos depois, Maria virou Mamãe Noel pela primeira vez, com a tradicional roupa vermelha costurada por uma cunhada sua. Devidamente trajada, saiu de bicicleta pelo bairro e, no mesmo dia, percorreu a cidade de carro com um sobrinho, doando doces e espalhando alegres gargalhadas.

Em 1996, tornou-se a Mamãe Noel do Guanabara, fazendo animação para crianças carentes. A associação de moradores se encarregava da arrecadação de presentes e ela os distribuía.

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Quatro anos mais tarde, resolveu se afastar da associação, embora permaneça voluntária até hoje, e passou a organizar uma festa de Natal em casa. Seu marido reciclava materiais para ajudá-la com o evento. Com o dinheiro arrecadado, chegavam a montar 40 cestas com quilos de alimentos. Todo dia 15 de dezembro, iam comprar os mantimentos, para que as famílias pudessem cear com um mínimo de dignidade.

Com a mesma vestimenta de 1995, ela ainda desfila pelas ruas de Joinville, distribuindo doces para garotada. Mas uma série de perdas fez com que a luz de Maria brilhasse um pouco menos a cada verão, pela tristeza que a solidão traz. Primeiro, foi o marido, Luiz Manoel, parceiro até na ideia de se tornar a Boa Velhinha. Depois, o filho, Carlos Roberto, atropelado por um caminhão enquanto pedalava pela cidade no ano passado.

Em 2013, no entanto, uma sineta dourada anuncia que a esperança começa a ganhar lugar no coração de Maria. Em 4 de outubro, ela recebeu a certidão de registro ou averbação do CD A Casa Encantada, do Ministério da Cultura, por meio da Fundação Biblioteca Nacional, pela produção de letras de música e poesia.

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O disco, gravado com composições e voz sua há cerca de seis anos, agora lhe confere o reconhecimento como artista. Para celebrar, o saco de doces e o tum-tum-tum-tum-tum do sino voltaram a tilintar no Centro da cidade.

-Meu palco é a rua, e não abro mão desse palco. O trabalho aqui em casa acabou. Mas se lá fora alguém precisar da Mamãe Noel, com certeza estou na estrada-, afirma.

Além do CD, Maria é autora dos livretos Cada Princesa Tem Seu Príncipe, Pedalando Te Encontrei (que conta a história de como conheceu o marido), O Pobre Papai Noel, A Coragem de Uma Servente, O Silêncio de Uma Autora, O Jovem que Arriscou por Amor (sobre quando Luiz Manoel a pediu em casamento, ainda que ela já tivesse um filho com outro homem) e A Luta por Um Ser Humano _ título dado pelo filho, esta obra não foi publicada.

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Maria, a artista, conta que as letras, quando vêm, já vêm prontas, com melodia e tudo. Se o CD um dia lhe der uma renda, pretende ajudar a educação, a saúde e a segurança municipal. Das 1.137 cópias, entretanto, pouca coisa foi vendida. Mas ela tem confiança de que as coisas vão melhorar.

-É a maior realização saber que meu trabalho, daqui pra frente, pode dar frutos que dividirei com o município, com o Estado e, por que não sonhar, com o Brasil. Quero compartilhar o pouco que tenho com Joinville, para retribuir de alguma forma o lugar onde eu cresci, onde fiz minha história.

Emocionada, Maria chora. Na voz embargada, revela a dor de quem muito perdeu e está aprendendo a aceitar novas vitórias. Como se estivesse declamando uma poesia que acabou de inventar, ela coloca na garganta toda a força que busca na simpatia dos outros:

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-Ser artista é saber dividir, é trazer do nascimento o dom do amor, da fraternidade. Joinville chorou comigo, sofreu comigo, é o berço do meu filho, o túmulo dele, é minha dignidade, a minha luta do dia a dia. Ser poeta é ser filho da natureza.

A senhora Noel, natural de Jaraguá do Sul e apaixonada por Joinville há 62 anos, quando se mudou para cá, diz também ser encantada pelas crianças que ficam vidradas com sua presença em puro vermelho _ exceto pelas botas, o cinto, o cabelo e os olhos de ébano. Das crianças favoritas, está o casal de netos que vive com ela, mas que passa o Natal longe, com a mãe.

-O artista é palhaço: mesmo chorando, tem que fazer rir. Não é por estar sofrendo que vou deixar de distribuir sorrisos. Eu acho que nasci festeira. Lá fora, eu dou força, dou carinho. Eu sei o que é a tristeza aqui, nesta casa vazia.

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