Laerte Coutinho, 66 anos, só se assumiu transgênero para o mundo depois dos 58. Apesar de recente, o acontecimento garantiu à artista o título de ícone das pessoas trans no Brasil. Não sem antes se firmar como chargista e cartunista reconhecida no Brasil e no mundo, com mais de 20 livros publicados – o próximo, em fase de roteiro, vai abordar sexualidade e política –, além de presença diária nos maiores jornais do país.

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Mais recentemente, com documentário Laerte-se, da rede de streaming Netflix, tornou-se mais próxima daqueles que já conheciam Sônia, o alter ego representado por ela nos quadrinhos. Confira os trechos principais da entrevista:

Como é o seu processo de criação?

Eu não tenho exatamente um ritual. Mas depois de 40 e tantos anos desenhando, tenho alguns procedimentos que são a minha forma de trabalhar. Eu meio que sei as minhas dificuldades, me conheço razoavelmente e sei onde me socorrer quando as ideias parecem estar difíceis ou meio áridas. Tenho algumas anotações de ideias mais ou menos em estado larval (risos). E tenho também o meu próprio acervo, né? Quer dizer, eu acho que as ideias em geral vêm de outras ideias, de outras pessoas e também das próprias ideias, entendeu? Nesse sentido, quanto mais a gente tem uma história de produção, mais tem um potencial de continuar produzindo. Porque o que a gente faz também é comida, também abastece as ideias futuras. Agora, como rotina, eu gosto de separar a parte da manhã para me situar no dia, no mundo, no país. Mas isso se altera com certa facilidade. É só entrar outra coisa na pauta que muda tudo.

Esse é um momento de escassez ou riqueza de ideias?

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Eu não penso muito nessa parte de um ambiente mais favorável ou menos favorável. O meu modo de existir é por meio desse trabalho que eu faço. E eu faço isso em qualquer situação política ou social em que eu viva.

Tem algum projeto paralelo a ser lançado em breve?

Em breve, não. Mas estou fazendo uma história muito grande com a Editora Todavia, de São Paulo, mas não sei quanto tempo vai levar. É algo que vai ser extraído de uma narrativa de quase 40 anos. Não é autobiografia, mas tem material da minha vida, lógico. Não estou nomeando pessoas que existem, mas criando personagens. Quero vasculhar o que aconteceu nesses 40 e tantos anos na área do sexo e da política. Estou fazendo o roteiro ainda.

Em meio à polêmica das manifestações contra exposições em museus (Queermuseu, em Porto Alegre, e La Bête, em São Paulo), você publicou uma tirinha na internet que foi amplamente compartilhada. Ela tratava da questão do ânus.

Eu dei uma engrossada um pouco provocada pela truculência com que os fascistas estão avançando sobre o corpo da cultura brasileira. Não é um corpo no sentido de cadáver, mas é um corpo, que está sendo devorado e atacado por esta sanha fascista que busca a censura. Busca ferir, né? Eu fiz meio com raiva. Eu não gosto muito de trabalhar com raiva porque, em geral, eu não produzo coisas muito boas. Mas aí me vem essa questão de como existe essa vigilância. O outro fala que o juiz julgou com a bunda. É tudo uma obsessão com questões anais que essa gente tem que, sinceramente, eu quis fazer uma resposta grossa.

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Foi uma resposta aos casos de censura nos museus?

É, foi por isso que eu comecei a fazer. Lembrei de um cartum muito antigo, dos anos 70 que saiu na Charlie Hebdo ou na Hara Kiri, talvez. Não lembro o autor. Era uma coisa que envolvia também essa situação do médico examinando uma pessoa e encontrava uma coisa inusitada lá dentro. Era uma imagem de uma santa (risos). Eu sabia que ia ter uma boa repercussão, porque as pessoas estão um pouco ansiosas e nesses momentos essas engrossadas costumam repercutir. Mas eu não me arrependi. Achei que naquele momento era o que eu precisava fazer e fiz.

Você sente que desempenha um papel nesse momento de tanta polaridade?

Mas isso é muito pequeno. O que é uma grande repercussão para mim? Para os meus padrões é, sei lá, 3 mil, 4 mil curtidas ou compartilhamentos, retuítes. Isso é uma besteira perto do alcance que tem qualquer um desses comediantes de direita ou esses pseudo pensadores de direita. A presença desse pensamento conservador nas redes sociais é muito grande.

O contato das pessoas nas redes sociais aumentou depois que você aceitou fazer o documentário com a jornalista Eliane Brum?

Acho que o documentário aumentou um pouco essa interação toda, porque ele foi distribuído pela Netflix, que é uma rede com bastante alcance. Mas eu sinto que, basicamente, eu faço eco nas montanhas que eu já conhecia.

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De qualquer forma, senti que aumentou um pouco. As respostas a esse documentário muitas vezes incluíram pessoas que nunca tinham pensado nisso. E isso eu acho muito bom.

A Eliane deixa claro que no início você demonstrou resistência em participar. Por que, ao final, você acabou topando?

Ah, eu acabei topando porque a Eliane é uma pessoa que me inspira muita confiança. A Eliane e a Lygia [Barbosa da Silva] são pessoas que me deixaram confiantes em relação a isso. Porque, ao contrário do que muita gente diz, eu não sou uma exibicionista (risos).

Quando a pessoa chega a produzir transformações físicas no corpo não está mais lidando com questões simbólicas, mas de essência. Então, a pessoa está tentando intervir de uma forma profunda em um desarranjo pessoal. Essas maneiras de intervir são muito variadas. Eu nunca quis mudar minha genitália. Nem quero. Mas a ideia de ter seios não só já me seduziu, como ainda me seduz.

Laerte

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Muita gente te diz isso mesmo, Laerte?

Algumas dizem. Dizem que eu sou exibicionista, que eu sou oportunista, que eu inventei essa coisa de transgeneridade só para me promover… Esse tipo de acusação eu venho ouvindo desde 2011, quando eu resolvi tornar pública a minha transgeneridade. Quando eu resolvi viver com o aspecto que eu quero ter, sabe? Eu ouvi isso muitas vezes.

E como você chegou até a sua transgeneridade?

É um caminho meio tortuoso. Eu acho que começa pela minha orientação sexual, que eu demorei muitos anos para aceitar e conviver com a minha homossexualidade. Quando isso aconteceu, acho que eu entrei num período de paz interna e que me permitiu perceber mais coisas sobre o meu modo de ver a vida, incluindo a forma de ver gênero. E, depois de um tempo, até usando, inclusive, a ferramenta prospectiva do meu trabalho, quer dizer, usando os meus personagens, eu descobri que essa coisa de querer ser feminina não era só um recurso de roteiro, era também um desejo meu. E daí, ligando pontinhos e conhecendo pessoas que já viviam a transgeneridade, eu fui me aproximando.

Nesse caminho, você optou pelos seios, mas rejeitou a cirurgia de redesignação sexual. Qual que é a importância desses simbolismos, sejam os seios ou a vagina e a vulva, para a afirmação de uma pessoa como mulher?

Não é bem símbolo. Quando a pessoa chega a produzir transformações físicas no corpo não está mais lidando com questões simbólicas, mas de essência. Então, a pessoa está tentando intervir de uma forma profunda em um desarranjo pessoal. Essas maneiras de intervir são muito variadas. Eu nunca quis mudar minha genitália. Nem quero. Mas a ideia de ter seios não só já me seduziu, como ainda me seduz. É evidente que quanto mais velha fico, mais distante isso se torna, porque enfrentar uma operação, ainda que seja relativamente simples, não é tão leve. Quem me disse isso foi o João Nery [primeiro homem trans a ser operado no Brasil]. Ele falou: olha, cuidado! João Nery tem a minha idade. A gente tem 60 e poucos anos. Não é moleza. Agora, eu vou fazer o processo de hormonização, com o devido cuidado, com a assistência de uma endócrino, e acho que por esse caminho vou entender um pouco melhor.

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Por que eu desenho? Não sei. É onde eu me reconheço mais bem equipada para me exprimir. Acho que escrevo de forma muito difícil. O resultado é muito insatisfatório. Eu nunca me dei muito bem em música, que eu gostava também. Enfim, acabei achando que o desenho era onde eu estava mais firme e acho que vou desenhar até conseguir segurar.

No documentário, você se refere às várias formas de intervenção. Fala que existe uma espécie de preconceito dentro da população entre quem tem seio e quem não tem, quem tem vagina e vulva e quem não tem. E que essas pessoas seriam mais ou menos mulher. Isso realmente existe?

Olha, isso existe. Em alguns episódios, eu já me senti agredida ou hostilizada por pessoas que me cobraram tais ou quais atitudes, mas isso foi um momento que não se repetiu. Eu também me afastei de situações ou de contextos em que existia esse tipo de cobrança, porque não me interessa isso. Não me interessa manter contato ou cultivar relações com pessoas estreitas. É uma visão meio corporativa, em que para você ser aceita em determinado grupo, você precisa de características, preencher o formulário (risos). Achei melhor não insistir, sabe? Já vi intervenções que foram difíceis ou desagradáveis para algumas pessoas. Não é uma belezinha para todo mundo. Acho que é um erro você considerar isso um pré-requisito. A minha visão do que é a transgeneridade, de como uma pessoa pode ser transgênera, é muito ampla. A ideia de se transformar numa mulher 100% mulher entre aspas me parece fantasiosa.

Por que, Laerte?

Porque, na verdade, é uma má compreensão do que se entende por gênero. Eu acredito que existe sexo e existe gênero. Sexo são as questões biológicas. Há uma história biológica que você não tem como controlar, porque ela já aconteceu. Gênero é outra coisa. É algo cultural.

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O amor é algo negado às pessoas trans, especialmente às mulheres trans, que são sempre sexualizadas e até violentadas. Isso quem me disse foi uma mulher trans de Florianópolis e me marcou. Você concorda que, como mulher trans, é mais difícil viver um amor?

Eu acho que sim. A dificuldade que a nossa cultura tem de admitir que gênero pode ser uma identidade, uma expressão livre, ela conduz a um pensamento binário e a um pensamento em termos de gênero muito opressivo.

A opressão patriarcal se manifesta nesse contexto em que a transgeneridade também se apresenta. Então, as pessoas trans acabaram historicamente sendo recusadas de um convívio. Em termos de um convívio normal, social, digno e foram empurradas para situações de aperto ou mesmo de risco. Existe uma quantidade estupidamente grande de pessoas trans na prostituição, em subempregos e em situações periféricas na economia e da vida econômica. E nesse sentido elas se inscrevem dentro do modo como as prostitutas são vistas também. Quer dizer, as pessoas trans são encaradas como um objeto sexual, e assim como as mulheres prostitutas, a elas também é negado espaços de dignidade humana, né?

Como tem sido a sua vida em relação ao amor, ao acesso ao amor e a ser amada por alguém?

Ah, aí, minha flor, é outra história. Aí é outra entrevista e eu não sei se eu estou a fim de falar (risos).

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Acha que se pode diminuir a violência transfóbica a partir da maior visibilidade?

É tudo pelo o qual a gente torce. Essa parte é a mais traumática da questão. São os ataques e as mortes, e a discriminação, a marginalização de pessoas trans. Que isso acabe é muito importante. Se essas obras e matérias e pesquisas têm ajudado, beleza.

As charges do Laerte mudaram quando comparadas às charges da Laerte?

Acho que não mudou muita coisa. A minha cabeça não mudou. Eu evidentemente sou uma pessoa que muda de opinião, de ideia e de crença. Agora, o fato de ter me tornado feminina não mudou muita coisa, a não ser que me deixou mais satisfeita comigo mesma e num ponto melhor. Tem reflexos no que a gente faz, claro. O fato de você estar satisfeita com o modo com que você conduz a vida é decisivo. O fato de você ir aos poucos eliminando as frustrações e as ansiedades… Essa coisa de ficar guardando um problema por 34 anos, que é o que aconteceu com a minha homossexualidade, acaba causando problemas que você nem imagina e tem raiz nisso. Eu tô falando de coisas básicas, como você não conseguir parar de fumar ou de roer unha e não saber por quê. Então, tem essas coisinhas práticas e tem outras que são mais complexas.

Por que você escreve e desenha hoje?

Isso já foi objeto de muitas obras mesmo. Muitos escritores e escritoras, incluindo uma de minhas preferidas, que é a Margareth Atwood, ela escreveu um livro que se chama Negociando com os mortos. Ela fala: esse livro é uma tentativa de responder a essa pergunta. Por que você escreve? É encantador. O que ela fala é isso: a necessidade que o autor ou a autora tem. O que é escrever? O que é produzir? Ela resume no final: é fazer uma viagem, voltar e contar. Por que eu desenho? Não sei. É onde eu me reconheço mais bem equipada para me exprimir. Acho que escrevo de forma muito difícil, quer dizer, é difícil para mim escrever. O resultado é muito insatisfatório. Eu nunca me dei muito bem em música, que eu gostava também. Enfim, acabei achando que o desenho era onde eu estava mais firme e acho que vou desenhar até conseguir segurar, né? Eu já me aposentei, inclusive, mas isso não quer dizer que eu vá parar de trabalhar (risos). Com R$ 1 mil não dá.

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