Em 1633, o Tribunal da Santa Inquisição condenou por heresia o italiano Galileu Galilei. Para não arder na fogueira, o matemático, físico e astrônomo renegou as próprias ideias escritas no livro Diálogos sobre os Dois Grandes Sistemas do Mundo. Na obra, ele defendia o heliocentrismo – o Sol é o centro do universo e os planetas giram em torno dele. Para alguns teólogos, plana e imóvel, a Terra era o núcleo do sistema. Galileu escapou das chamas. Mas cumpriu prisão domiciliar até a morte.

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Em 1983, a Congregação para a Doutrina da Fé determinou que o catarinense de Concórdia Leonardo Boff, hoje com 78 anos, se apresentasse ao Tribunal. O inquisidor era o cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento 16. Boff foi interrogado por publicar o livro Igreja: Carisma e Poder. Nas páginas, ele explicava os princípios da Teologia da Libertação, corrente nascida na América Latina com a premissa de que o Evangelho exige opção preferencial pelos pobres. Com forte atuação em movimentos populares como o dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e Comunidades Eclesiais de Base, acabou sendo penalizado.

Diferentemente do que ocorreu com Galileu, o catarinense não foi obrigado a pedir perdão. Mas condenado ao silêncio. Ficou impedido de escrever, dar entrevistas e palestrar. Em 1992, mais de três séculos após a morte de Galileu, a Igreja reviu o processo e absolveu o cientista italiano.

No mesmo ano, o então franciscano deixava a batina. Havia retomado parcialmente as atividades, mas temia nova condenação. Hoje, o teólogo nascido Genézio Darci Boff vive em Petrópolis (RJ) com a companheira Márcia Monteiro da Silva Miranda. É autor de 60 livros, tem um blog e faz palestras mundo a fora. Sem apagar da memória o dia em que foi levado ao assento de Galileu Galilei:

– Fui julgado num prédio grande e escuro que há séculos é a sede da Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício e ex-Inquisição. Tive um processo doutrinário com todos os requisitos jurídicos. Sentei onde todos os julgados pela Inquisição sentaram.

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O senhor sentou na cadeira ocupada por Galileu Galilei para dar explicações sobre o livro Igreja: Carisma e Poder. O que assustou tanto a Igreja da época? Hoje faz alguma autocrítica ou não mudaria uma linha do que foi escrito?

Comparando o que escrevi com o que o papa Francisco vive dizendo, meu livro parece um texto de piedade. O Papa fala que há bispos com cara de vinagre, padres que vivem em eterna Sexta-Feira Santa e cardeais tão tristes como se fossem ao próprio enterro. Não cheguei a tanto.

Estaria na hora de retornar ao Vaticano para ser recebido por Francisco, com quem o senhor troca correspondência e tem um profundo respeito?

Já fui convidado pelo Papa para um encontro, pois ele está se reconciliando com os teólogos da Libertação que foram condenados, como Gustavo Gutiérrez e Jon Sobrino. Tenho uma boa relação para com ele. Pediu-me textos para escrever a encíclica sobre a ecologia integral, já que trabalho com o tema há mais de 20 anos. Tudo que mandei foi praticamente aproveitado e ele se mostrou grato pela colaboração. Falta apenas o encontro pessoal, que deve ocorrer na próxima viagem para a Europa.

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A Bíblia tem servido de base para muitos discursos, como os de combate à chamada ideologia de gênero. Isso se repete em outras áreas relacionadas ao comportamento, especialmente nas que se percebe avanço do fundamentalismo. Como usar a própria Bíblia para contra-atacar uma leitura literal dos textos bíblicos?

Creio que há muita ignorância a respeito do tema de gênero, discussão que tem pelo menos 50 anos. Trata-se de discutir as relações sociais de desigualdade que existem entre homens e mulheres em quase todas as culturas atuais. Também tem a ver com as escolhas pessoais no campo da sexualidade. Vale para mim o preceito evangélico: se há amor entre as pessoas do mesmo sexo, há algo de Deus e eu paro e me calo. Bem disse Jesus: “Se alguém vem a mim eu não o mandarei embora” (Jo 6,37). Podia ser uma prostituta, um teólogo como Nicodemos ou um cobrador corrupto de impostos: a todos acolhia e todos saiam melhores do que chegavam.

LEONARDO BOFF

O PT tem medo da verdade e de reconhecer que cometeu erros. O partido deve publicamente reconhecer tais erros. O povo é compreensivo e sabe perdoar, desde que se retome o antigo amor de lutar pela justiça dos pobres e fazer políticas de inserção social.

As igrejas falam para bilhões de pessoas em todo o planeta. Qual a responsabilidade que elas têm na construção de uma sociedade menos desigual?

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A Igreja sempre pregou a fraternidade, a igualdade, o amor e a compaixão, valores altamente sociais. Mas os cristãos geralmente não se regem por esses valores, mas por aquilo que é dominante na sociedade que, no nosso caso, é individualista, consumista e egoísta.

O capitalismo avança sobre os recursos do planeta Terra e colabora para o fracasso de tentativas de acordos globais para deter a ameaça ecológica. O que é possível fazer para salvar a pele da espécie humana?

Não temos outro caminho senão conscientizar as pessoas acerca das ameaças que pesam sobre o sistema-vida e o sistema-Terra. Criamos o princípio de autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares que podem destruir toda vida. Confiemos no Espírito Criador que nos vai abrir a mente e o coração para evitar semelhante Armagedom.

Em fevereiro de 2016, o senhor escreveu que o PT devia uma autocrítica ao povo brasileiro. Quase dois anos depois, acha que isso foi feito ou o partido continua devendo?

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O PT tem medo da verdade e de reconhecer que cometeu erros. O partido deve publicamente reconhecer tais erros. O povo é compreensivo e sabe perdoar, desde que se retome o antigo amor de lutar pela justiça dos pobres e fazer políticas de inserção social. A verdade sempre tem um poder próprio e não precisamos ter medo dela, pois é libertadora.

O senhor vê alguma chance do PT se transformar numa fênix capaz de ressurgir das cinzas, voltar às bases e retomar o caminho que o lançou e o fez chegar ao poder máximo no país?

No espectro dos atuais partidos não vejo outro que tenha a base tão ampla e a envergadura (não obstante os erros e críticas, é o maior partido do país) tão poderosa que possa desfazer os malfeitos contra o povo e retomar a linha de redenção dos mais vulneráveis. Por isso, devemos crer nas possibilidades do PT, sim. Na verdade, foram somente alguns setores da cúpula que se corromperam. Nas bases, nos Estados onde o PT estava no poder isso não ocorreu. Inaugurou-se outro estilo de exercício de poder sempre em diálogo com o povo e com sua participação. Aqui está a semente boa que pode resgatar todo o partido debaixo para cima.

O senhor já consegue ver um cenário para as próximas eleições no país?

O fato é que estamos num voo cego dentro de um avião sem piloto. Ninguém sabe o que poderá ocorrer. Há uma inércia generalizada. O povo se resignou dizendo que a política é isso mesmo, o campo dos sujos, dos espertos, dos corruptos. As pessoas desistiram de combater. Mas penso que quando o sofrimento chegar à pele, quando o pai de família ver os filhos chorando por fome, de não poderem dormir com a barriga vazia, eles sairão às ruas para derrubar um governo corrupto e antipopular. Deverá surgir alguma liderança civil que mostre um caminho de regeneração.

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LEORNARDO BOFF

Só iremos despertar após algum desastre que afete todo o globo.

Que avaliação o senhor faz sobre a política do governo Michel Temer nas questões sociais, principalmente aquelas que atendem as pessoas mais pobres?

O golpe nasceu de dentro do Pentágono. A questão foi: quem vai controlar a sétima economia do mundo que está ganhando hegemonia na América Latina e na África? A estratégia era para desestabilizar os governos progressistas. Não por via militar, como em 1964: via parlamentar, unindo mídia, setores do judiciário e do empresariado associado ao grande capital mundial.

Com qual objetivo esse desmonte ocorreu?

O objetivo foi o de implantar um neoliberalismo extremamente severo contra as conquistas sociais feitas em favor do povo e repassar a riqueza nacional às mãos de pequenos grupos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 71.440 pessoas, com os grandes bancos privados, que controlam grande parte da economia do país. Somos um dos países mais desiguais entre os mais injustos do mundo e que mais maltratam a população pobre e marginalizada.

O senhor tem se colocado como um crítico em relação à Lava-Jato e ao juiz Sérgio Moro. Continua achando que a hipocrisia é uma das marcas da operação e do magistrado?

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Sou a favor do combate rigoroso à corrupção. Pela primeira vez, donos das grandes empresas foram colocados atrás das grades. Mas sou pela imparcialidade do juiz, sua virtude maior, coisa que o juiz Sérgio Moro não pratica. Ele leva uma estratégia de verdadeira perseguição a Lula e ao PT. Mas não consegue condená-lo, porque, segundo os melhores juristas, faltam provas claras e transparentes. Então forjam continuamente motivos para a condenação cuja materialidade é pífia quando não totalmente vazia. A questão não é judicial. É política. Tal comportamento é indigno de um juiz, e o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria intervir, mas ele é parte e cúmplice desta estratégia de deformação da figura do maior líder que é Lula. O STF sempre serviu à classe dominante e teve uma relação profundamente canhestra com o povo e com os pobres.

O senhor é catarinense de Concórdia, neto de italianos que vieram para o Sul e há muitos anos mora fora do Estado. Qual sua relação com Santa Catarina?

Praticamente não tenho parentes em Concórdia. Quase todos se mudaram para outros Estados para continuar os estudos. Mesmo assim, tenho voltado para molhar as raízes e atender a convites de instituições, como universidades e Sesc. Até se criou um Centro Cultural com meu nome. Sempre que posso volto aos lugares da infância, pois são sacramentais e nunca saem do coração.

Quais lembranças o senhor guarda da sua infância e da adolescência?

Guardo lembranças que são dos primeiros desbravadores da região que para lá chegaram para criar suas famílias. Predominavam os pinheirais, a mata densa, os rios correntes e muitos animais e pássaros. Nossa diversão era armar arapucas para pegar pássaros, alguns grandes como o jacu. E eram tantos que tínhamos que fazer um verdadeiro viveiro. Meu pai era professor e atendia toda a região com seus conhecimentos de medicina, pois era o único que detinha penicilinas e sabia aplicá-las. Assim salvou muitas vidas.

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Com 11 anos, o senhor foi para o seminário em Luzerna, no Meio Oeste do Estado. Ainda assim conseguiu aproveitar o convívio com a família?

Sim. Tornaram-se inesquecíveis as festas populares, duas vezes ao ano: uma feita com a caça de pássaros e polenta e outra uma buchada, com pão e regada com muito vinho de colono. De resto, vivíamos como todos os jovens viviam, fazendo carrinhos de madeira, caçando e trabalhando na roça junto com minha mãe enquanto meu pai dava aulas de manhã e de tarde. E havia muita piedade em casa com a reza do terço todas as noites.

LEONARDO BOFF

Conheço praticamente todos os Estados, mas reconheço que Santa Catarina tem algo especial: há uma grande homogeneidade cultural.

Há quem diga que Santa Catarina é um Estado conservador e dominado pelas elites. Porém, a história registra lutas como a Guerra do Contestado e a organização de movimentos sociais, sendo berço do Movimento das Mulheres Camponesas (margaridas) e tantas outras resistências até mesmo silenciosas. O que se pode pensar disso?

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Conheço praticamente todos os Estados, mas reconheço que Santa Catarina tem algo especial: há uma grande homogeneidade cultural. Guardam-se as tradições, sejam italianas, alemães, polonesas e outras com festas típicas cujo efeito é conferir coesão e sentido de pertença à população. Além disso, se trabalha muito e de forma séria. É o Estado onde o Brasil deu certo. Tenho orgulho de pertencer a esse pequeno, belo e exemplar Estado da federação.