O sorriso de Gioconda mais triste do que enigmático. As mãos de Queiróz mais trêmulas do que frias. Os passos de Biro-Biro mais perplexos do que indecisos. O sotaque de Velásquez mais confuso do que vago. O olhar de Tânia mais assustado do que instigado.

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Motivos diferentes levaram essas pessoas a um mesmo lugar. Ao acinzentado cenário dos ranchos incendiados de dois pescadores artesanais e três de maricultores, em Santo Antônio de Lisboa, ao noroeste da Ilha de Santa Catarina. Com razões distintas, mas com uma perplexidade em comum, juntaram-se na tarde desta terça-feira. Amargam juntos a dor causada pelo incêndio nos ranchos ocorrido no último sábado.

Três dias depois de línguas de fogo lamberem paredes, redes, embarcações que estavam nos barracões de um dos distritos mais antigos de Florianópolis. Gioconda Rosito é pequena empresária; José Alberto Queiróz pescador; Gilson Vieira, o Biro Biro, morador; Nicolas Velazquéz, um ex-jogador de futebol argentino; Tânia Lamarca uma premiada cineasta.

Velazquéz, um drible a ser dado

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Foto: Felipe Carneiro/Agência RBS

Compreensível a angústia frente ao que restou dos ranchos. Assim como a gastronomia, um dos atrativos turísticos do lugar, a maricultura é praticada por famílias que no passado viviam da pesca artesanal. Quase 72 horas após, o cheiro de queimado se misturava com o da maresia. Por entre os escombros, aparelhos de pesca queimados, barcos retorcidos, freezers inutilizados, frutos do mar perdidos.

O distrito de Santo Antônio de Lisboa, que para quem passa pela Avenida Beira-Mar Norte fica do outro lado das águas da baía, inclui também as comunidades de Sambaqui, Barra de Sambaqui e Cacupé. No lugar vivem cerca de 8 mil pessoas. Mas ali ainda se olha para os vizinhos. No lugar que nasceu sob a proteção de Nossa Senhora das Necessidades, a urgência de um torna-se também do outro. Ganha sabor de coletivo, assim como a importância econômica das espécies cultivadas nas águas muitas vezes encrespadas pelo vento.

Tânia Lamarca, chamas consomem vidas no que não tem vida

Foto: Felipe Carneiro/Agência RBS

Naquele que é dos distritos mais antigos da hoje Florianópolis, e que guarda marcas dos açorianos que em 1748 por ali aportaram, a vida comunitária tem significado. O efeito do incêndio tornou-se maior do que as chamas vistas. Um pouco desse sentimento se cultua em eventos como a Festa do Divino Espírito Santo, no Terno de Reis e Pão por Deus. Nas risadas das Farinhadas, nas cantorias do Boi de Mamão, no Carnaval do Baiacu de Alguém.

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A causa do incêndio depende de parecer da perícia. O fogo foi visto por volta das 20h30min de sábado. Há suspeitas de curto circuito, queda de raio ou intensa variação de temperatura. Quase na mesma hora houve uma tempestade com muitos relâmpagos sobre a Ilha. Cada proprietário calcula seu prejuízo. Representantes da prefeitura estiveram no local, inclusive o prefeito Cesar Souza Junior, e por se tratar de uma área de marinha existe a necessidade de autorização para a construção dos ranchos. Mas, diferente dos ranchos de pescadores que têm uma legislação específica, essa atividade dos maricultores (o rancho) não dispõe de um amparo legal.

Queiróz, artesão do mar fica sem seus instrumentos

Foto: Felipe Carneiro/Agência RBS

Por isso, apesar do empenho prometido, a questão deve se arrastar por algum tempo. É o que prevê Gioconda Rosito. Mesmo confiante nas autoridades, diz que precisa atender aos restaurantes, quitar despesas e pagar funcionários.

Desde esta quarta-feira, Gioconda improvisa o trabalho em uma tenda. Sob a lona erguida com quatro paus, retoma a limpeza das ostras, recém-chegadas do mar. Por falta de luz elétrica, encaminha imediatamente o produto para os restaurantes. Ao estilo da comunidade, onde o espírito comunitário ainda dita comportamentos, ofereceu o espaço para os companheiros de atividade.

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Juntos, sugere a mulher que teve o nome inspirado na obra de Leonardo da Vinci, fica mais fácil se livrar das lágrimas, das preocupações, das cinzas.

E assim recuperar os sorrisos. Ainda que de um só lado da boca.

Gioconda, entre a dor e a esperança

Foto: Felipe Carneiro/Agência RBS

Veja galeria de fotos dos ranchos destruídos: