De tempo em tempo, o pedreiro Nivaldo Araújo da Silva, 64 anos, precisa se mudar. Foi assim há três meses, quando a areia das dunas da praia dos Ingleses quase soterrou sua antiga casa de madeira na Vila do Arvoredo, também conhecida como Favela do Siri, no norte da Ilha.
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Localizada em Área de Preservação Permanente (APP) e em terras da União, o Siri, nascido no final da década de 80, é uma das 64 comunidades irregulares de Florianópolis. Locais em que vivem mais de 50 mil pessoas, aproximadamente 12% da população da Capital, segundo a Secretaria de Habitação.
Número que não para de crescer, atrelado principalmente à estagnação do Plano Municipal de Habitação de Interesse Social (PMHIS), criado pela Prefeitura de Florianópolis em abril de 2013 com o objetivo de zerar o déficit habitacional da cidade em 15 anos.
O plano prevê a regularização fundiária das comunidades e a realocação de famílias que vivem em áreas de risco e APP. Efetivamente, porém, o PMHIS ainda não mostrou a que veio, dizem líderes comunitários ouvidos pela Hora.
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Um bom exemplo é a comunidade do Siri, cujas tratativas para realocarem os moradores acontecem desde a década de 90. O assunto chegou a ser discutido entre a prefeitura e a Caixa Econômica Federal em 2014, com avanços que deram esperança ao povo do Siri.
No entanto, o diretor de habitação do município, Paulo Bastos Abraham, disse que o projeto de loteamento não foi aprovado pela Caixa, pois o banco teria pedido reavaliação de custos.
Já a assessoria de imprensa do banco afirmou que esse documento não chegou a ser apresentado para que a Caixa realizasse análise de viabilidade do empreendimento, o que fez com que o projeto voltasse à estaca zero. “A prefeitura e a Caixa já discutiram o assunto, entretanto não foi apresentado projeto técnico para que o banco realizasse análise de viabilidade do empreendimento diante das regras do Programa Minha Casa Minha Vida”, diz a nota enviada pela assessoria da Caixa.
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Assim, o projeto, que quando começou a ser discutido beneficiaria 168 famílias cadastradas no local há três anos, para tirá-las de um ambiente nocivo à saúde pública e ao meio ambiente, terá que ser ampliado para abranger cerca de 240 famílias que lá vivem atualmente – média de 3,5 pessoas por lar -, em uma soma de mais ou menos 1 mil moradores.
Déficit habitacional tende a aumentar

Desde 2013, apenas a comunidade do Sapé, no Continente, foi regularizada. Desde então, a prefeitura até iniciou o processo de regularização em outras comunidades, mas nenhum deles ainda foi concluído. Algumas estão em estágio avançado, como a comunidade da Serrinha, no Maciço do Morro da Cruz, informa João Carlos Vieira Dalponte, gerente de regularização fundiária da Secretaria de Habitação.
Mesmo assim, Dalponte não arrisca uma data para concluir os processos de regularização fundiária em andamento.
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— Não dá para falar em datas porque estaríamos mentindo. Está complicado, é preciso fazer um diagnóstico, depois um projeto de urbanização, para só então dar início à regularização, que é a etapa mais demorada — explica.
Ao contrário de diminuir o déficit habitacional – promessa de 2013 -, a própria prefeitura estima aumento das moradias irregulares na cidade. Até 2028, mais de 76 mil pessoas vão morar em áreas irregulares na Capital.
— Nossa projeção é de que 76.644 pessoas estarão em áreas irregulares daqui a 12 anos — afirma Dalponte.
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Avanço das dunas já soterrou “duas ou três ruas” do Siri
O Siri é também um dos assentamentos precários — classificação dada pelo Ministério das Cidades para espaços segregados dentro dos municípios — mais carentes da cidade. Localizado em meio às dunas e à restinga, entre o mar e o asfalto e sobre o aquífero dos Ingleses, manancial responsável pelo abastecimento de todo norte da Ilha, o Siri não tem saneamento básico e as ligações de água e luz são clandestinas, os famosos “gatos”.
A areia das dunas avança de oito a 12 metros por ano em direção às casas da comunidade.
— Eu costumo medir o avanço da areia, e sempre fica entre oito e 12 metros, isso depende muito da intensidade e direção dos ventos, assim como as chuvas — explica Nivaldo Araújo da Silva, ex-presidente da Associação de Moradores da Vila do Arvoredo.
O número de moradores do Siri, que também sofre com a violência e o tráfico de drogas, só aumenta, especialmente nos meses de verão, quando muitos visitam a Ilha e resolvem ficar.
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— Todos os anos chega gente, e isso só aumenta os problemas que temos de bicho de pé e ratos, além dos conhecidos problemas respiratórios e pulmonares que atingem muitos por causa da areia — observa Nivaldo.
Quando chegou ao Siri, vindo do oeste do Paraná, em 2000, a comunidade abrigava cerca de 100 famílias, conta Nivaldo. Por R$ 2 mil à época, comprou seu primeiro barraco na comunidade, que hoje “está bem abaixo da terra”.
— A areia sumiu com minha primeira casa. Já da segunda, saí quando a duna já encostava na parede. Hoje estou morando no setor A, mais afastado das dunas — comenta.
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Nivaldo tem três filhos, 12 netos e dois bisnetos. Apenas um filho e dois netos não moram no Siri. Sobre o futuro da comunidade, composta principalmente de gente do oeste catarinense, gaúchos e paranaenses, Nivaldo diz não ver “muito horizonte”.
Preconceito e truculência policial

Elisângela Santos Moraes, a Nina, 34 anos, presidente da Associação de Moradores da Vila do Arvoredo (Amovila), chegou de Foz do Iguaçu há 20 anos e, com outras mulheres da comunidade, tenta organizar a entidade para mobilizar as pessoas em busca de respostas do poder público ao dilema que envolve moradia.
— Toda hora está surgindo uma nova casa, e nós moradores não temos como impedir. Sabemos que precisamos sair daqui, mas para isso precisamos de um lugar para ir — expõe Nina. O trabalho encontra resistência na própria comunidade, um dos motivos que desmantelou a antiga presidência da associação.
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Devido ao grande número de residências irregulares no Siri, vez por outra ações de fiscalização esquentam o clima entre moradores e policiais. Em 19 de abril, uma ação da Floram que previa a demolição de residências irregulares terminou em confusão. Após a primeira casa ser destruída, moradores montaram barricadas com lixeiras e pneus na entrada na comunidade e atearam fogo em seguida, impedindo o acesso ao local.
Revoltados, os moradores da comunidade do Siri reclamaram da truculência policial. Com lágrimas nos olhos, a empregada doméstica Rudineia da Silva, relatou, na época, a situação de desespero à equipe da Hora. A casa dela era uma das que iria ser derrubada naquela terça-feira:
— A gente sabe que não pode construir, mas foi por uma questão de necessidade, de escolher se eu dava comida para os meus três filhos ou pagava aluguel. Eu e meu marido conseguimos juntar R$ 2 mil e construímos a casa, pra tentar dar uma vida digna para nossos filhos — disse.
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Outra moradora, Kauana Luiza, disse que existe muito preconceito:
— A polícia e muita gente pensa que todo mundo que mora aqui é bandido ou vagabundo. Até pra conseguir um emprego quando falamos que moramos na Favela do Siri não dão.
Ações judiciais não sensibilizaram o poder público
Em 1995, na época em que a comunidade do Siri começou a receber massivamente novos ocupantes, o Ministério Público Federal (MPF/SC) encaminhou um pedido à Prefeitura de Florianópolis para que as famílias que habitavam o entorno das dunas fossem retiradas do local.
Nos anos 2000, tanto o MPF/SC como o Ministério Público de Santa Catarina (MP/SC) passaram a ingressar com ações civis públicas para tentar fazer cumprir a lei, e desocupar a área de APP, bem como regularizar a moradia daquelas pessoas em outro lugar.
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Uma delas é de 2006, na Promotoria do Meio Ambiente do MP/SC, e cobrava das autoridades medidas para conter o avanço do loteamento irregular que nega o direito das pessoas à moradia digna e agride o meio ambiente, bem como se encontrasse uma maneira de realocar as famílias em outro local.
Em 2010, uma nova ação foi adicionada à de 2006. Depois de muitos anos de trâmite, recentemente a ação civil pública transitou em julgado, e a prefeitura homologou um acordo com MP/SC, informou a assessoria do órgão, se comprometendo a instaurar um procedimento administrativo e fazer o levantamento socioeconômico e ambiental da comunidade, para avaliar a possibilidade de regularização fundiária das famílias ou realocação em outra área.
A reportagem da Hora entrou em contato com a Procuradoria Geral do Município, que respondeu ser a Secretaria de Habitação a responsável pelo assunto. A pasta, por sua vez, disse desconhecer o teor do acordado com a Justiça.
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Promessas
O governo municipal promete achar uma nova área para realocar as famílias desde 1995. Isso nunca avançou tanto quanto em 2014, quando o município adquiriu um terreno nas proximidades da comunidade para abrigar parte dos moradores, onde se ergueria o residencial Recanto dos Ingleses, com 96 unidades.
O projeto foi orçado em R$ 8 milhões, entre infraestrutura e moradias, revela Paulo Bastos Abraham, diretor de Habitação. Mas imprevistos que encareceriam a obra fizeram com que a ideia fosse abandonada, já que seria necessário aterrar a área, pois o solo não era adequado para habitação.
— O projeto no Siri está parado no momento. Com essas mudanças em Brasília, governo provisório, deixou tudo muito incerto — disse Paulo.
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Na própria comunidade, muitos moradores não se opõe a se dividirem em mais de uma área caso haja a realocação. Alguns também entendem que algumas ruas da comunidade já estão consolidadas, e nem todos os moradores precisariam ser realocados.
De acordo com os dados disponibilizados no site do Ministério das Cidades, o município de Florianópolis assinou seu termo de adesão ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) em 24 de janeiro de 2007. Apresentou à Caixa, em 29 de abril de 2008, a Lei de Criação do Conselho e em 21 de fevereiro de 2013, a Lei de Criação do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS). Por fim, apresentou em 5 de abril de 2013 seu Plano Local de Habitação. O município está apto a receber recursos do Ministério das Cidades para moradias populares, se apresentar projetos.
Maciço do Morro da Cruz e Continente

Das 64 comunidades de Florianópolis, 31 estão em terras públicas, 19 privadas, seis público/privadas e oito não se enquadram em nenhuma das definições. Terrenos que foram sendo parcelados ao longo do tempo, sem nenhum tipo de fiscalização do poder público, que muitas vezes até incentivou a formação dessas comunidades, como foi o caso do Monte Cristo.
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De acordo com Nina, do Siri, que vê os dois filhos pequenos correrem entre o lixo e eletrodomésticos que servem “para barrar” o avanço das dunas em Ingleses, os moradores da comunidade desejam a regularização fundiária das áreas para obterem as escrituras que permite receberem o carnê do IPTU no próprio nome, assim como as contas de luz e água.
Do total de mais de 50 mil moradores em áreas irregulares em Florianópolis, cerca de 35 mil vivem nas comunidades do Maciço do Morro da Cruz e do Continente, exemplos da Serrinha e do Monte Cristo, respectivamente.
Dalponte, gerente de regularização fundiária do município, afirma que os dois locais estão em estágio avançado de regularização. Na primeira, são 500 unidades a serem regularizadas, das quais 329 já estão cadastradas. As dificuldades, acredita, se concentram “na falta de interesse de muitos moradores” em regularizar suas casas.
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Já no Monte Cristo, com mais de 1 mil unidades previstas no PMHIS, nem 400 cadastros estão prontos. O mais difícil, diz, é a violência que ronda a comunidade, calcada no tráfico de drogas que domina algumas localidades, como Chico Mendes e Novo Horizonte.
Quais as comunidades de Florianópolis estão em fase de regularização
— Panair, no Carianos, sul da Ilha – 38 unidades, para as quais já foram concedidos 21 termos de uso;
— Vila União, Vargem do Bom Jesus, norte da Ilha – 210 unidades à espera de regularização;
— Vila Cachoeira, Saco Grande, norte da Ilha – 205 unidades;
— Serrinha, Maciço do Morro da Cruz – 500 unidades;
— Caieira do Saco dos Limões, Maciço do Morro da Cruz – 833 unidades;
— Mariquinha e Tico-tico, Maciço do Morro da Cruz – 451 unidades;
— Mont Serrat, Maciço do Morro da Cruz – 491 unidades;
— Morro do Horácio, Maciço do Morro da Cruz – 898 unidades;
— Morro do 25, Maciço do Morro da Cruz – 650 unidades;
— Morro da Penitenciária, Maciço do Morro da Cruz – 502 unidades;
— Morro da Queimada e Jagatá, Maciço do Morro da Cruz – 326 unidades;
— Morro do Céu, José Boiteaux, Morro do Laudelino e Santa Clara, Maciço do Morro da Cruz – 250 unidades;
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— Vila Aparecida, Continente – Habitação não soube informar;
— Morro Santa Vitória, Maciço do Morro da Cruz, 329 unidades;
— Monte Cristo, Continente – mais de 1000 unidades;