O aviso veio em 1º de março. Na abertura das sessões ordinárias do Congresso argentino, o presidente Mauricio Macri, que assumira em 10 de dezembro, subiu o tom contra o governo anterior e disse ter encontrado um Estado “infestado de clientelismo, desperdício e corrupção”. O elemento central do discurso de Macri está, justamente, no meio dessa frase, no “desperdício”.

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Desde ali, houve uma mudança radical de conceitos econômicos entre o governo passado e o atual. O anterior se pautava pela presença do Estado e pela assistência social. O novo aposta no liberalismo praticamente sem ressalvas. Macri sustenta que o aumento em tarifas públicas serve para compensar os gastos com subsídios sociais.

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Talvez o episódio mais revelador seja o da renegociação com credores especulativos. A ex-presidente Cristina Kirchner alegava soberania e alertava que o pagamento levaria ao uso de dinheiro que deveria ser aplicado no bem-estar social. Macri contesta essa orientação. Alega que o dispêndio será compensado pelo retorno da Argentina ao cenário mundial e que isso trará investimentos capazes de compensar os gastos para o acordo com aqueles que Cristina chama de “abutres”.

– Quando se fala nas mudanças para um novo ciclo político na região, elas são consequência direta das transformações econômicas provocadas pela diminuição nos preços das commodities – diz o historiador argentino Carlos Malamud, que vê nas mudanças políticas um forte fundo econômico.

A queda nos preços das commodities influencia a política sul-americana. A Venezuela talvez seja o caso mais representativo da situação. Dependente do petróleo para adquirir divisas, por ser 95% das suas exportações, o governo venezuelano perdeu a maioria parlamentar e vive uma crise intensa.

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Macristas alegam que o presidente é transparente

Macri tomou posse já delineando prioridades – entre as quais a mudança do eixo econômico. As primeiras ações seriam visitar a presidente brasileira Dilma Rousseff e negociar com os credores. Tudo para reinserir a Argentina na economia mundial. Se reduziria programas sociais e aumentaria tarifas como forma de compensar o que considera excesso de subsídios, o novo governo sempre apostou na volta dos investimentos. A estimativa é de que a inflação esteja domada até junho.

– O presidente sempre foi transparente em seus objetivos para pôr a economia do país nos trilhos – comenta o economista e deputado Eduardo Amadeo, presidente do Banco da Província de Buenos Aires entre 1987 a 1991, secretário nacional de Desenvolvimento Social entre 1994 e 1998 e embaixador nos Estados Unidos entre 2002 e 2003.

Os sindicalistas mostram insatisfação, e isso é considerado um contexto arriscado para qualquer presidente argentino. São lembrados casos como os dos ex-presidentes Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa, ambos da União Cívica Radical (UCR), partido rival do peronismo e das centrais sindicais que este controla. Os dois, sob pressão, abreviaram seus mandatos. Nos últimos dias, o líder da Confederação Geral do Trabalho (CGT), Hugo Moyano, disse que “Macri precisa entender as demandas sociais” e que suas medidas são “perversas”. O líder da Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), Pablo Micheli, disse que a Argentina “caminha para o conflito social”.

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A situação é de demissões no setor público e aumentos de tarifas de até 100% no transporte, de 500% na eletricidade e na água e 300% no gás, além de crescimento de 6% ao mês, desde dezembro, nos preços dos combustíveis. A carestia também atinge os alimentos básicos, pesando no bolso dos argentinos, e desafiam as centrais sindicais, em meio a uma inflação que deve superar os 30% anuais.

Pablo Moyano, filho de Hugo e presidente do Sindicato de Caminhoneiros, diz que “terminou a lua de mel com o governo” e que haverá “greves e mobilização nas ruas”. Isso significa bloquear vias e colapsar a economia. Os funcionários públicos têm protestado. Pedem um freio nas demissões. Calcula haver 9 mil exonerações no setor público nacional e 25 mil no provincial.

– As demissões tinham de ser feitas, eram parte da plataforma de campanha – alega o ministro da Fazenda, Alfonso Prat-Gay, que critica a máquina pública “inflada” pelo kirchnerismo.

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– Fomos explícitos na campanha, e isso nos confere autoridade – diz o ministro, que, em entrevista coletiva, repetiu o mantra governista: é “uma transição”.

Uma transição e uma aposta

Os aliados de Mauricio Macri sustentam que a “transição” se dá entre o “populismo” do governo anterior e a ortodoxia econômica do atual, apelando para a austeridade e para um choque de realidade. Mas o contingente de demitidos no setor público já levou a Associação de Trabalhadores do Estado (ATE) a enviar ofício para a Organização Internacional do Trabalho (OIT) descrevendo “a perseguição sofrida pelos trabalhadores públicos em seus setores de trabalho e as demissões em massa”.

Transição ou não, necessárias ou não, as medidas repercutem e levam a Argentina a registrar crescimento de mais de cinco pontos percentuais na taxa de pobreza, alcançando mais de um terço (34,5%) da população. Os dados são da Universidade Católica da Argentina (UCA). Conforme o relatório, a pobreza em 2015 chegava a 29% dos argentinos e passou a 34,5% entre o final do ano passado e março deste ano, o que representa 13,8 milhões de pessoas. A indigência chegou a 6,9% – 2,7 milhões de pessoas.

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– Isso só pode ser compensado com aumento nas ajudas sociais e a reativação do mercado de trabalho – alerta Agustín Salvia, diretor do Observatório da Dívida Social Argentina da UCA.

Macri aposta na volta dos investimentos a partir de uma política econômica mais realista. Tem conversado reservadamente com governadores peronistas, que pedem dosagem menor nos aumentos de tarifas, cortes de subsídios e demissões. Esses aliados de ocasião também esperam o começo dos investimentos para tocar adiante seus próprios projetos. O novo presidente arrisca. Decidiu promover aumentos de supetão em vez de fazê-lo gradativamente. O objetivo é dar um sinal inequívoco para a banca internacional. Espera a decisão da Câmara de Apelação dos EUA, na próxima quarta-feira, que tende a desbloquear os investimentos no país mediante o acordo com os credores especulativos. Enquanto isso, o ministro Alfonso Prat-Gay já negocia com investidores potenciais em títulos argentinos, sabendo que disso depende o projeto do seu governo.