Thiago Momm, Especial

Rafaela e Richard Schmidt apostam na amizade para enfrentar períodos de crise
Rafaela e Richard Schmidt apostam na amizade para enfrentar períodos de crise (Foto: Marco Favero / Agencia RBS)

Imagine o seguinte roteiro. Rabih, nascido em Beirute, é arquiteto e mora em Edimburgo. Está solteiro há alguns anos e sempre na expectativa de conhecer alguém. Em um trabalho de campo, um dia ele se depara com Kirsten, inspetora escocesa. Eles se apaixonam, namoram e casam, mas ainda estamos no começo do filme. O restante é sobre o cotidiano do casamento e a chegada de dois filhos.

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O produtor que recebesse isso provavelmente olharia torto para o roteirista. A história é banal. Não tem surpresas, vertigens, reviravoltas. E a ideia de o relacionamento se estabilizar no começo? Quantos espectadores se interessariam pelo que vem depois?

Para o filósofo anglo-suíço Alain de Botton, no entanto, é justamente dos aspectos cotidianos das relações que a arte precisa aprender a falar. A história de Rabih e Kirsten, que não daria muita bilheteria como comédia romântica, é criada por ele no muito comentado The Course of Love (O Curso do Amor*), um livro que mistura ficção e filosofia para explorar o desenrolar convencional de uma relação prolongada. The Course of Love está sendo lançado em tour pela Europa mas não deve demorar para sair em português — de Botton teve seus 12 títulos anteriores publicados no Brasil.

Filósofo anglo-suíço Alain de Botton, autor de The Course of Love
Filósofo anglo-suíço Alain de Botton, autor de The Course of Love (Foto: Vincent Starr / divulgação)

— As histórias das relações que duram décadas, sem uma óbvia calamidade ou felicidade plena, permanecem as exceções entre as narrativas que ousamos contar a nós mesmos sobre os progressos do amor — ele escreve no livro.

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O psicanalista Contardo Calligaris, na sua coluna na Folha de S.Paulo, uma vez disse algo afim. Em Hollywood, notou, “o que é idealizado nunca é o convívio, mas a perda, a saudade, o luto ou, no máximo, a procura”.

Mesmo nas categorias de filmes independentes e filmes estrangeiros do Netflix, a convivência de um casal é um tema incomum. Quando é tratada, muitas vezes não permanece em primeiro plano. The Course of Love aponta esse problema e já se oferece como alternativa. De Botton sabe falar do convívio intrigando o leitor. Se vemos Rabih e Kirsten divergindo irritados sobre que copos comprar na rede de lojas Ikea, também lemos que “o parceiro ideal para nós não é o que acontece miraculosamente de compartilhar todos os gostos, mas aquele capaz de negociar diferenças de gosto com graça e inteligência”. Isso aguça o olhar do leitor sobre as suas próprias relações e o deixa mais compreensivo com elas.

Cativar não é um feito qualquer para um livro que declara, quando Rabih e Kirsten se casam, depois de apenas um quinto das páginas, que o desafio romântico ficou para trás e a vida a partir de agora vai assumir um ritmo fixo, repetitivo, ao ponto de eles passarem a ter dificuldade de localizar um evento específico no tempo, tão similares os anos vão parecer por fora. Ou seja, ele não morrerá atropelado, ela não reencontrará um antigo amor mal resolvido. Os filhos vão trazer mudanças, mas não desestruturar o casamento. Kirsten não vai receber uma oferta de emprego distante, Rabih não vai descobrir que tem poucos meses de vida. Um acontecimento afeta a certeza de um dos dois sobre o casamento por um tempo, mas sem exageros ficcionais.

De Botton está mais preocupado com uma discussão sobre a divisão de tarefas da semana ou sobre as delícias e os deslizes das fantasias conversadas durante o sexo. Em vez da história romântica tradicional, que tanto nos inspira quanto nos diminui com as suas idealizações, The Course of Love quer mostrar o quanto o “amor é uma habilidade, não apenas um entusiasmo”, e que ter nossas vivências corriqueiras espelhadas na arte nos faz prestigiá-las, deixando-nos mais aptos a fruir os longos relacionamentos.

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Experimentos maduros

Para fazer jus ao livro, o repórter conversou com três casais deixando os efervescentes ideais românticos o máximo possível de fora. Queria saber pouco sobre a intensidade dos inícios e muito sobre dilemas habituais como os do casal do livro.Um desses dilemas são as discussões de relacionamento. De Botton leva Rabih e Kirsten à terapia de casais e elogia suas conversas por lá como “um pequeno laboratório de maturidade em um mundo obcecado pela ideia de amor como um instinto e um sentimento não analisável”. Ou seja, conversar é uma das habilidades do amor.

Os dentistas Diego e Luciane Peiter, pais de Davi, resolveram o desgaste do convívio profissional incluindo diálogo e negociação na relação
Os dentistas Diego e Luciane Peiter, pais de Davi, resolveram o desgaste do convívio profissional incluindo diálogo e negociação na relação (Foto: Felipe Carneiro / Agencia RBS)

— A última vez deve ter sido a primeira ou a segunda em que fui eu a puxar o assunto (sobre o relacionamento). Surtiu um efeito muito legal. Pensei que a gente não tinha nada a perder — conta Richard Schmidt, 37 anos, há sete com Rafaela, 26 anos, enquanto o insubordinado Frederico, um gato mundano adotado em abril, sobe nos móveis.

Apesar disso, Richard considera “um pânico estar de mal com a pessoa e ter que discutir a relação”, e que “95% das vezes (o melhor) é esperar passar” o clima de conflito. Rafaela, em contrapartida, odeia “ficar com qualquer coisa no imaginário”.

As “DRs” foram imediatamente associadas pelos três casais a um controle de incêndio pós-briga, mas para o professor de psicologia da UFSC e psicoterapeuta de famílias e casais Adriano Beiras é importante olhar para elas “com mais naturalidade, mais como parte do cotidiano que um lugar de conflito e problema”. O excesso não é saudável, como em tudo o mais, mas as DRs são valiosas para “negociar e equilibrar” a intimidade.

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A prática prova isso. Diego e Luciane Peiter, ambos dentistas, ele 36 anos e ela 33, vêm colhendo os benefícios de uma DR. Como moram em cima do consultório, sofriam o desgaste do convívio profissional, discutiam por isso, até legislarem o seguinte: falar de Odontologia, só no andar de baixo. “Abriu a porta de casa, já era”, ele diz, e ela acrescenta que agora nem o mínimo recado profissional passa por essa porta.

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Um novo desafio

Outro ponto que se sobressai no livro é o da decisão de se casar. Rabih pede Kirsten em casamento por diversos motivos. Quer “congelar” o que eles sentem um pelo outro; quer interromper os “pensamentos desgastantes sobre relacionamentos” da vida de solteiro; quer dar uma prova do seu compromisso, porque sente estar fazendo algo “arriscado”.

Juntos há 16 anos, Tamara e Eduardo Steinmetz buscam sempre um novo desafio para manter a relação
Juntos há 16 anos, Tamara e Eduardo Steinmetz buscam sempre um novo desafio para manter a relação (Foto: arquivo pessoal / arquivo pessoal)

— Chega um momento, em um relacionamento tão longo, que parece que se tu não deres o próximo passo fica meio monótono. Tem que ter um novo desafio — diz Tamara Alves Steinmetz, que está com Eduardo há 16 anos, casada há seis. Os dois têm 34. Estavam próximos dos 30 e não queriam mais morar com os pais, explicam diante de um piso de borracha para crianças e a miríade de brinquedos de Pedro, 9 meses, e Olívia, 3 anos.

Diego e Luciane casaram por um motivo mais velha guarda. Eram recém-formados e queriam “ganhar liberdade”, já que o padrinho dela, que a criou, não via bem o fato de já quase coabitarem. O casamento foi em 2006.

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A arte que idealiza o romantismo, criticada por de Botton, também pode influenciar. As comédias românticas afligiam Rafaela Schmidt durante uma época do noivado.

— Por um bom tempo eu me frustrava, pensava “será que é assim (como no filme), será que sou só eu, o que tá acontecendo com a gente?”.

Mesmo que ela e Richard fossem noivos sob o mesmo teto, o fato de ele não apressar o casamento colidia com a criação tradicional que ela teve. Então, parou de ver filmes dulcificados. Ir à psicóloga e cursar Serviço Social na UFSC a deixaram mais crítica quanto à ansiedade de casar. Isso suavizou o tema para os dois, que então casaram não só na festa oficial, em 2015, mas informalmente algumas vezes antes. Uma delas foi em um cenário neozelandês que um diretor de fotografia não desperdiçaria.

O psicoterapeuta Adriano Beiras explica que a idealização romântica estimulada pela arte “não é o que efetivamente sustenta uma história, ela pode ser importante para começar”. É diferente, enfatiza, “a pessoa que te dá a excentricidade da paixão da pessoa com a qual você tem conexões para o cotidiano”. O ritual de se casar é importante porque nos dá alguma segurança, “sem ele a gente deixa um lugar de talvez, não sabemos”. Ao mesmo tempo, pode ser um ritual vazio se o encararmos como algo que funciona sozinho em vez de um projeto a ser constantemente considerado e apoiado pelo casal.

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Mais vertiginoso e interessante

Entre os tantos temas explorados em The Course of Love, o mais fascinante é um implícito em todos os outros: se assumirmos que manter um romantismo intenso como o dos filmes é pouco viável, quais os principais benefícios das relações que perduram?

A reportagem fez essa pergunta a Martha Medeiros, que além de escrever crônicas valiosas sobre relacionamentos integra a School of Life, instituição criada por Alain de Botton na Europa, voltada à inteligência emocional. O repórter também queria saber se a “monogamia serial”, entendida como recomeços com novas pessoas ao longo dos anos, não seria mais rica em possibilidades.

Rafaela e Richard acreditam que em momentos de crise o que sustenta a relação é a amizade
Rafaela e Richard acreditam que em momentos de crise o que sustenta a relação é a amizade (Foto: Marco Favero / Agencia RBS)

— Não tenho dúvida que uma relação duradoura pode ser mais vertiginosa e interessante do que infinitos recomeços com pessoas diferentes. As pessoas tentam fugir da mesmice mas só o que conseguem é mais do mesmo: o entusiasmo inicial e fim — ela sustenta. — Dedicar-se a uma única pessoa pode, contraditoriamente, ser um processo muito mais dinâmico, pois uma relação passa por diferentes fases ao longo da vida. As descobertas feitas a dois, a troca de confidências, os acordos feitos para manter a coisa funcionando, os ajustes, as brigas, os reatamentos, as piadas internas, o sexo mais íntimo, a passagem do tempo trazendo novos desafios… Nada disso me parece enfadonho.

Os casais que conversaram com a reportagem pareciam saber disso. Luciane e Diego olham reverentes um para o outro durante as respostas e têm um senso de humor sincronizado. Depois de quatro anos de tentativas e uma inseminação artificial frustrada tiveram um filho, Davi, que hoje está com 9 meses e os aproximou. Mas, alertam, para casais que não estão bem, um filho tende a significar término, não solução.

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Para Tamara e Eduardo, se tornarem mãe e pai aumentou a admiração de um pelo outro, pelo modo como se viram mutuamente. Os dois são fascinados em acompanhar o crescimento dos filhos, e orientam com prazer todo tipo de programa em função deles.

Rafaela e Richard, que por enquanto convivem apenas com o gato Frederico, percorreram vários países juntos. Sobre a parte mais cotidiana do casamento, Rafaela a vê dividida em três — as relações familiares, a amizade entre os dois e o aspecto sexual. Ela e Richard notam que são pontos tão essenciais quanto oscilantes, raramente em alta ao mesmo tempo. Nos momentos de crise, o que sustenta tudo é a amizade.

Alain de Botton diz que as vidas de Rabih e Kirsten “envolvem uma rotação constante de humores. Ao longo de uma semana eles podem girar da claustrofobia à admiração, do desejo ao tédio, da indiferença ao êxtase, da irritação à ternura”. É claro que o romantismo intenso há séculos exaltado pela arte traz inspirações positivas para o cotidiano — Stendhal chamou o amor de nada menos que o “milagre da civilização”. É claro também, como lembra o psicoterapeuta Adriano Beiras, que há outras importantes formas de se relacionar, como a da poligamia e do poliamor, somadas a um contexto de orientações sexuais mais fluidas. Seja como for, vamos continuar nos apegando a algumas pessoas e passando com elas quantidades significativas de tempo. Por isso, que a arte valorize também o que é mais banal na vida dos casais só pode ser algo bem-vindo.