Em abril de 2008, em um discurso na Praça de Maio, a presidente argentina, Cristina Kirchner, questionou a cobertura dos meios de comunicação sobre as divergências entre o governo e ruralistas. No mesmo ato, o sindicalista Hugo Moyano, aliado de Cristina, levantou um cartaz com os dizeres “Clarín miente!”. Começava aí uma batalha travada pela Casa Rosada contra o Clarín, o maior grupo de comunicação da Argentina.

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Quase quatro anos se passaram, Cristina foi reeleita, e o conflito só aumenta. Na terça-feira, 50 policiais invadiram a emissora Cablevisión, do mesmo grupo, por conta de uma disputa comercial duvidosa. Hoje, o Senado deve aprovar um lei que poderá retirar do Clarín e do La Nación o controle do único fabricante de papel-jornal do país.

Para o porta-voz do Grupo Clarín, Martín Etchevers, trata-se de uma intolerância crônica dos Kirchner, de Cristina e de seu marido, Néstor, morto no ano passado, com o jornalismo profissional. Confira a entrevista concedida por telefone a Zero Hora:

Zero Hora – Por que os governos Kirchner geraram essa tensão com o Clarín e o La Nación?

Martín Etchevers – Há uma profunda intolerância dos Kirchner ao jornalismo profissional. Basicamente, qualquer voz que não responda acriticamente ao discurso oficial, passa a ser um adversário.

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ZH – Como o senhor descreveria a estratégia do governo contra a liberdade de imprensa?

Etchevers – A intolerância do governo Kirchner se expressa em ações muito concretas, destinadas por um lado a afetar os meios independentes tanto em sua credibilidade, ou seja, estigmatizando-os, e por outro lado, afetando-os economicamente e condicionando-os juridicamente. Há, também, a criação de um enorme aparato de comunicação oficial e paraoficial para tentar impor o discurso do governo e debilitar os meios independentes. Nos últimos dois anos, desde a sanção da Lei dos Meios de Comunicação, aumentou exponencialmente o número de veículos de comunicação controlados direta ou indiretamente pelos Kirchner. Sejam meios estatais, mas administrados como emissoras governamentais, ou seja pelos veículos de comunicação criados com a fachada de privados, mas que são financiados exclusivamente com publicidade oficial, com fundos públicos.

Ocorre uma campanha sistemática do governo através de seus organismos regulatórios e administrativos para fustigar a imprensa independente e, também, através de aliados circunstanciais, que podem ser grupos de choque, como foram em um momento sindicatos que bloquearam os diários ou alguns grupos que são financiados pelo governo e levam adiante a investida contra os meios independentes. Somente nós, do Grupo Clarín, temos suportado mais de 350 medidas de ação direta, perseguições administrativas, falsas denúncias, bloqueios, discriminações publicitárias, uma quantidade de ações avalizadas pelo Estado destinadas a afetar nossa credibilidade e nossa integridade econômica, patrimonial e jurídica.

ZH – O senhor pode citar algumas dessas medidas?

Etchevers – As medidas são a aplicação seletiva da lei de meios ou os bloqueios ao diário, que Hugo Moyano, que é um sindicalista aliado do governo, organizou, impedindo que o Clarín circulasse. Ou a proibição da venda do jornal Clarín no Mercado Central. São inumeráveis.

ZH – Qual a principal consequência da Lei de Meios?

Etchevers – O discurso de que serviria para democratizar se mostrou uma falácia. Longe de democratizar, de criar mais emissoras comunitárias, de fomentar as minorias, o que se viu nesses últimos dois anos foi um crescimento dos veículos oficiais e paraoficiais e, em muitos casos, a partir de outorgas sem licenças oficiais. O que vemos é uma colonização midiática por parte do governo na Argentina. Hoje, mais de 80% dos meios audiovisuais na Argentina respondem ao oficialismo. De sete canais a cabo de notícias, um pertence ao Grupo Clarín. Os outros seis são de grupos mais ou menos próximos ao governo, mas todos vinculados. O mesmo ocorre com a rádio, com a televisão. Calcula-se que 70% ou 80% das rádios respondam ao oficialismo, e é preciso ter clareza sobre a ferramenta que usam. Por um lado, se utilizam da publicidade oficial. O governo usa os fundos públicos para condicionar a linha dos meios de menor porte. Por outro lado, há casos em que o governo utiliza de fraquezas jurídicas de alguns meios maiores para os condicionarem.

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ZH – Depois dessa reeleição histórica, esperava-se que a presidente deixasse de perseguir a imprensa?

Etchevers – Sim. Pensamos isso. Foi enviada uma carta cumprimentando pelo triunfo contundente e fazendo votos para que isso se traduzisse em um maior diálogo e um maior nível de tolerância para o exercício do jornalismo. Mas as duas primeiras medidas depois da reeleição são uma tentativa de sancionar na calada da noite em menos de uma semana a lei de controle de papel para os jornais, sem escutar os jornais acionistas.

Foi feito um acordo em 48 horas na Câmara dos Deputados e, sem que a lei estivesse no Senado, tudo fora acertado em uma reunião na mesma noite em que se aprovou o projeto na Câmara. Esse projeto não tem lógica. É um tema que não merece urgência e até diria que é anacrônico porque o papel para os jornais sobra no mundo, está sobreofertado no mercado e não há qualquer necessidade de regulação, a não ser que o objetivo seja controlar o abastecimento de papel como se controla a publicidade, ou seja, como um sistema de prêmio.

ZH – O segundo ato foi a invasão de terça-feira?

Etchevers – Sim, não está diretamente ligado, mas é muito funcional ao governo. Obviamente, os policiais respondem ao governo e por isso não se pode deixar de ler esse episódio sem esse viés. Houve o beneplácito do governo porque não é possível enviar 50 policiais armados até a sede de um veículo de de comunicação por uma suposta causa de tipo comercial. Ainda mais, uma causa irregular, com uma decisão de um juiz que não tem competência para isso. Tudo isso reveste o fato de ontem (terça-feira) de uma gravidade e suspeita importante.

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ZH – A ação foi ilegal?

Etchevers – Para nós é ilegal e apelamos. O juiz não tinha competência para fazer isso. Foi uma decisão de um juiz de Mendoza, onde Cablevisión não tem operações, nem TV por cabo nem internet. Além disso, é um procedimento desmensurado e que excede o objetivo. Se o objetivo era avaliar uma disputa comercial, de maneira nenhuma isso requer policiais armados intimidando os empregados da empresa. Houve muitas coisas irregulares.

ZH – O governo de Cristina Kirchner coloca em risco a liberdade de imprensa na Argentina?

Etchevers – Não tenho a menor dúvida. A liberdade de expressão não significa poder apenas dizer o que se pensa. Significa dizer sem sofrer represálias administrativas, sem sofrer castigos, sem sofrer discriminações, ataques, perseguições. E hoje estamos vivendo tudo isso com o objetivo de afetar os meios independentes e, se fosse possível, destruí-los.

ZH – O governo quer destruir o Grupo Clarín?

Etchevers – Não tenho a menor dúvida. Estão buscando todas as maneiras para fazê-lo. Te digo 350 medidas.

ZH – Qual será a consequência prática do projeto de lei que será votado nesta quinta-feira?

Etchevers – Hoje, o papel abastece livremente a Argentina, com taxas zero de importação e produção. Ambas situações, a produção e a importação, passarão ao controle de um organismo do Ministério de Economia, que irá determinar quanto papel tem de ser produzido ou tem de ser importado na Argentina. Isso é proibido pela Constituição e pelo Pacto de San Jose, na Costa Rica. O Estado não pode controlar um insumo básico da imprensa. Não se pode permitir que quem deve ser controlado termine controlando o principal insumo da imprensa.

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ZH – Que comparação o senhor faria com outras restrições à imprensa vistas em outros países latino-americanos, como a Venezuela e o Equador?

Etchevers – Há uma matriz de intolerância aos meios independentes, à crítica e ao dissenso que é similar em vários países de América Latina, não só na Venezuela e no Equador, mas também, por exemplo, na Bolívia. Há apenas particularidades na forma como se concretizam essas estratégias. Talvez na Argentina seja um pouco mais sofisticada, seja por ferramentas legais mais complexas, por mecanismos mais sutis, salvo quando ocorre algo como ontem (terça-feira), muito ostensivas. Em geral, o processo na Argentina se dá por mecanismos mais mascarados, mais disfarçados, mas igualmente perigosos ou, em alguns casos, mais perigosos. Por exemplo, com a aplicação seletiva das leis e o uso da publicidade oficial cada vez mais escandaloso.

ZH – O que é escandaloso no uso da publicidade oficial?

Etchevers – Os últimos dados que levantamos há dois dias mostram que um só canal de televisão, o penúltimo em audiência, recebeu 64% da publicidade de televisão e é absolutamente alinhado com o governo. Na publicidade gráfica dos diários, os mais oficialistas levaram 50% da publicidade. Mas jornais como La Nación, Perfil ou Clarín, que são independentes, viram reduzir sua publicidade entre 70% a 80%. E o grupo Vila-Manzano, que fez a denúncia de Cablevisión, aumentou sua publicidade oficial em 2011 em 700%.

ZH – Haverá mais quatro anos de tensão?

Etchevers – Gostaríamos que a perspectiva não fosse essa, mas os primeiros sinais não são alentadores.

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