O Diário Catarinense adianta o editorial que publicará no próximo domingo para que os leitores possam manifestar concordância ou discordância em relação aos argumentos apresentados. Participações enviadas até as 19h de sexta-feira serão selecionados para publicação na edição impressa. Ao deixar comentário, informe nome e cidade.
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O ESPÍRITO DA TORTURA
Depois de quatro meses de uma investigação policial respaldada por intensa campanha nas redes sociais, o país finalmente conheceu os detalhes do sequestro, da tortura e da morte do ajudante de pedreiro carioca Amarildo de Souza, por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, no Rio de Janeiro. Com base nos depoimentos de testemunhas, no relato dos envolvidos e em mais de 32 mil ligações telefônicas interceptadas, além de provas periciais, o Ministério Público daquele Estado denunciou nesta semana mais 15 PMs, totalizando 25 acusados pelo assassinato.
São pessoas que, de alguma forma, por ação ou omissão, contribuíram com um crime inominável, que ressuscita o fantasma da tortura como método de confissão, expediente abominável dos regimes ditatoriais que, infelizmente, sobrevive em plena democracia brasileira. A apuração mostrou que foram quatro soldados os autores diretos da atrocidade, mas vários outros colaboraram tanto para a prática do delito quanto para sua ocultação. Isso não significa que todos os envolvidos compactuam com os métodos medievais empregados pelos torturadores.
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O que está por trás dessa conivência é o corporativismo imposto por um comando autoritário e pelo poder de intimidação dos delinquentes fardados, que ameaçam colegas para contar com o seu silêncio e para torná-los cúmplices de seus atos. Trata-se, portanto, do espírito da tortura mantido vivo por agentes policiais armados para defender os cidadãos _ e não para descarregar seus maus instintos sobre culpados e inocentes. Mesmo que Amarildo fosse um criminoso, não poderia ter sido submetido ao tratamento desumano que causou sua morte.
Segundo o relato de testemunhas ouvidas pelo MP, ele foi preso arbitrariamente num bar da comunidade, arrastado por oito policiais apesar dos protestos de sua mulher e levado para o interrogatório. Ao chegar à sede da UPP, foi colocado num depósito, submetido a choques elétricos, asfixiado com saco plástico na cabeça, afogado num balde e agredido até morrer. Então, os criminosos trataram de se desfazer do cadáver, que não foi encontrado até agora. Para isso, contaram com a proteção e o silêncio de outros policiais.
O deplorável episódio não desmerece o projeto das UPPs, que vem reduzindo a criminalidade e confortando a população em áreas até então dominadas pelo tráfico de drogas. Nem pode ser utilizado para deslustrar a imagem das polícias militares do país, majoritariamente reconhecidas pela população. Mas evidencia a permanência nessas corporações de focos de uma mentalidade incompatível com os direitos mais elementares do ser humano, que precisa ser repudiada e combatida até sua extinção.